Arquivo | Romance RSS feed for this section

Antoine et Antoinette, 1947

29 jun

Antoine et Antoinette, do mesmo diretor de Le Trou, é uma comédia romântica simples, que não chega a ter uma hora e meia de duração, mas extremamente adorável. Fazer uma análise muito profunda sobre o otimismo francês no pós-guerra ou as expectativas simplórias de um casal de “proletários” (aspas irônicas) é ir contra a proposta de Jacques Becker em criar uma história divertida e quase banal. Com um enredo parecido com o de Le Million, dirigido por René Clair, Antoinette é uma funcionária de uma loja de departamentos que compra um bilhete de loteria premiado, mas uma série de confusões faz com que seu marido Antoine, que desempenha uma função enervante em uma fábrica de livros, perca o bilhete pouco antes de buscar o prêmio.

Os dois moram em um apartamento modesto, sem lavabo e sem aquecimento central, na frente de uma quitanda. No dia-a-dia, uma série de problemas pequenos são resolvidos sem qualquer drama ou sofrimento (como o ferro elétrico que parou de esquentar e é substituído por um dos antigos, a antena quebrada no telhado que é consertada pelo próprio Antoine e os pedaços de jornal usados como palmilhas nos sapatos). Talvez, a dificuldade da Segunda Guerra tenha trazido uma paciência maior em lidar com incômodos insignificantes e aflorado uma percepção de que há coisas mais fundamentais para se preocupar – mas já estou analisando em excesso.

Antoinette é de uma beleza que atrai as atenções de todos os homens que encontra, inclusive a do Sr. Rolland, o dono da quitanda que costuma presenteá-la com os produtos da loja, prometendo uma vida melhor e sem tanto esforço. A insistência do quitandeiro e a atenção constante que ela recebe por todos os cantos provoca uma série de brigas entre o casal, mas eles logo fazem as pazes. Não há nada, afinal, que possa comprar o interesse de Antoinette e, mesmo entre os personagens secundários (como o dono do bar que nunca cobra nada de ninguém), dinheiro é a última coisa que importa.

Porém, quando Antoine percebe que perdeu o bilhete premiado – uma cena brilhante, em que um afinador de piano acaba criando uma trilha sonora de suspense no próprio local da ação – ele sente medo de que Antoinette finalmente o abandone. Inseguro, a memória de uma tarde no parque ganha outra interpretação. No passado, ele havia perguntado à esposa se ela poderia se apaixonar por outro, ela apenas olhou para ele e sorriu. Agora, relembrando, ele acredita que não foi bem assim, que ela apenas virou o rosto, sem reagir. A memória cria uma dúvida sem embasamento algum na realidade. Não é à toa que o filme ganhou o prêmio de melhor romance psicológico (“Prix du meilleur film psychologique et d’amour”) em Cannes.

O cinema é um jogo de expectativas. Em uma comédia romântica, esperamos que nada dê errado com os personagens de quem gostamos, mas um filme precisa de um conflito ou seria muito chato. Enquanto os dramas, em geral, frustram as nossas expectativas, as comédias começam no inferno e terminam no paraíso – por isso a “Comedia Divina”. Em Antoine e Antoinette, há vários momentos em que as coisas podem dar errado, como o trabalho perigoso que Antoine faz na fábrica, a cena em que ele sobe no telhado para consertar a antena, as várias discussões ameaçando o amor do casal, a perda do bilhete da loteria. É a tensão que Becker provoca em todo momento que torna a obra tão envolvente.

Além disso, Becker trata até os personagens mais irrelevantes à trama de forma humana e completa. Ninguém existe apenas para desempenhar determinada função, mas todos têm suas próprias personalidades e suas próprias histórias, como a moça que trabalha no guichê do metrô e nunca tem troco ou a filha do dono do bar que se casa e parece um pouco decepcionada com o noivo quando ele não aceita um dos charuto de seu pai. Há vários detalhes que parecem não ter importância alguma, mas que ajudam a estabelecer todo um universo precioso de conflitos e expectativas.

Under Capricorn, 1949

5 jun

Às vezes, os franceses acertam. Neste ano, escolheram Spielberg como presidente do júri em Cannes e homenagearam Jerry Lewis. Quando erram, acabam elogiando todo capricho escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, mas vamos nos concentrar nos acertos. A Cahiers du Cinema foi uma das grandes responsáveis pelo reconhecimento da obra de Alfred Hitchcock quando ninguém lhe dava o devido crédito. Entre os filmes do diretor, Under Capricorn foi um dos mais execrados pelo público americano e, ao mesmo tempo, um dos mais admirados pelos críticos franceses. Em 1958, foi escolhido pela Cahiers como um dos dez melhores filmes de todos os tempos – um exagero, é verdade, mas o fracasso nos Estados Unidos foi injusto.

Ambientado no início do século XIX, Under Capricorn conta a história do irlandês Charles Adare (Michael Wilding) que viaja à Austrália para fazer fortuna com o auxílio de seu primo, governador da colônia. Lá, ele encontra o latifundiário (e ex-presidiário) Sam Flusky (Joseph Cotten) e sua esposa de origem nobre Henrietta (Ingrid Bergman). Um dos vários problemas do filme, e que pode ter irritado o público, é que ele demora para engrenar. A trama só começa de verdade quando Henrietta aparece pela primeira vez, com os pés descalços, frágil e embriagada, em um jantar social do marido. A vulnerabilidade de Bergman, tão dolorosa e cativante, lembra a sua atuação no excelente Gaslight, de 1944. Charles, assim como o espectador, se sente preocupado, curioso, atraído.

Parecido com o que acontece com a personagem de Joan Fontaine em Rebecca (1940), Henrietta é controlada por Milly, a governanta da casa. Seja para enfraquecê-la com a embriaguez ou torturá-la com a abstinência, ela dá e tira o álcool da patroa quando lhe convém. Seu intuito é prejudicar a sua reputação e derrubar qualquer iniciativa sua para, por fim, destrui-la por completo e assumir o seu lugar. Ela até tem uma tática especial para deixá-la ainda mais perturbada. Quando Charles aparece e devolve um pouco de confiança e vitalidade à Henrietta, Milly faz parecer que os dois têm um caso e que é melhor Sam mantê-la longe dele e sob controle: drogada, submissa, sem vida. Ela acha que ele deveria abandonar Henrietta para viver com alguém da mesma estirpe que a dela própria, alimentando nele um complexo de inferioridade, além de ciúmes.

Muito do que o filme informa é pela fala de Henrietta, como quando ela conta da época distante em que era alegre e adorava cavalgar (algumas cenas de Marnie, 1964, vem à mente) ou quando relembra, como em um monólogo sem corte, do seu casamento com Sam, que era um funcionário de sua família, e do motivo da sua fidelidade a ele. Filmado depois de Rope (1948), suspense com James Stewart que dá a ilusão de ser contínuo (há sim pouquíssimos cortes disfarçados aqui e ali), Hitchcock queria continuar experimentando com os longos planos-sequência. Jack Cardiff, diretor de fotografia lendário, disse que Under Capricorn foi a sua pior experiência em um set de filmagem porque a câmera tinha de passar por diversos cenários diferentes, precisando que ele iluminasse até oito cômodos ao mesmo tempo, com eletricistas seguindo uma série de deixas complexas, além das paredes que se moviam para abrir caminho. O resultado é de uma fluidez e de uma estabilidade impressionantes para a época, mas o estilo não serve nenhuma função à narrativa (ao contrário, por exemplo, de Citzen Kane, 1941, em que a linguagem é casada com o tema).

Joseph Cotten, que detestou o filme desde a produção, não está bem. Falta um ator que combinasse melhor imponência e ternura, como Laurence Olivier em Rebecca. Na verdade, a primeira escolha de Hitchcock para o papel de Sam Flusky era Burt Lancaster, que acabou não participando, mas teria sido magnífico. Mesmo assim, Under Capricorn vale pela atuação de Bergman e pela profundidade da trama que torna a expectativa do amor um pouco menos idealista e mais real. Em um momento ou outro, todos os personagens (até Milly) precisam se sacrificar uns pelos outro, tudo se complica, tudo parece mais difícil e mais complexo – mas é por isso mesmo que a promessa parece tão grandiosa. No fim, o triângulo amoroso precisa ser dissolvido e um dos homens precisa tomar aquela mesma decisão de Humphrey Bogart em Casablanca (1942) e permitir que Ingrid Bergman seja feliz com o outro.

Woman of the Year, 1942

23 maio

Katharine Hepburn e Spencer Tracy se conheceram nas filmagens de Woman of the Year (1942) e permaneceram juntos até a morte de Tracy em 1967. Nunca se casaram, pois Tracy nunca se divorciou legalmente de sua primeira esposa, mas o carinho e a admiração que sentiam um pelo outro já eram visíveis no primeiro dos nove filmes que fizeram (que incluem Adam’s Rib e Guess Who’s Coming to Diner, o último deles). Ainda hoje, Katharine Hepburn é considerada por muitos como um ícone do feminismo. De fato, ela não se encaixava ao padrão de uma starlet comum. Além de interpretar personagens fortes e independentes, e de ter sido uma das primeiras mulheres famosas a ter o hábito de usar calças (depois de Marlene Dietrich), Hepburn controlou muitos aspectos da produção de alguns de seus maiores filmes, decidindo inclusive quem seriam os seus diretores e os seus coadjuvantes (Tracy foi uma escolha dela, junto do diretor George Stevens). A verdadeira essência das pessoas, contudo, é sempre mais complexa do que a capacidade que um rótulo tem de descrever alguém. Assim que o seu parceiro por mais de duas décadas adoeceu, Hepburn paralisou a carreira por cinco anos para cuidar exclusivamente dele, período que chamou depois de “o mais feliz de toda a minha vida”. Por coincidência ou não, Woman of the Year trata justamente sobre o relacionamento complicado entre duas pessoas inteligentes e ativas. Seja o homem ou a mulher, não é possível subjugar um às necessidades do outro. É preciso amor e dedicação de ambas as partes.

Spencer Tracy interpreta Sam, um jornalista esportivo que trabalha no mesmo jornal de Tess (Hepburn), responsável pela seção de política internacional. Um dia, Sam escuta Tess falando no rádio, dizendo que as pessoas deveriam gastar energia com assuntos mais importantes do que esportes. Os dois começam uma discussão pública em suas respectivas colunas, mas se sentem atraídos ao serem apresentados cara a cara. Querendo encerrar a briga de vez e conhecê-la melhor, Sam leva Tess para assistir um jogo de beisebol. Apesar de não entender nada, ela acaba se sentindo à vontade na cabine de imprensa dominada por homens. Tess retribui o convite e chama Sam para ir ao seu apartamento à noite. Imaginando que a levaria para jantar ou algo assim, leva flores, mas se depara com uma festa repleta de diplomatas, onde quase ninguém fala inglês. Ocupada ao extremo, Tess é uma figura muito mais poderosa do que Sam, lida todos os dias com vários chefes de estado, é fluente em espanhol, francês, alemão, grego e russo. Sam só fala inglês errado (“broken english”), o que assume rindo de si mesmo. Qualquer medroso se sentiria intimidado e desistiria por completo de Tess, mas Sam tem estrutura suficiente para aceitar o desafio. Se fosse hoje em dia, Tess teria uma dificuldade muito maior em encontrar alguém à altura.

Talvez por reflexo da Segunda Guerra Mundial, tanto homens como mulheres aparentavam ser mais fortes e mais corajosos nos filmes da década de 40. Com os homens nos campos de batalha, as mulheres passaram a se instruir mais e ocupar cargos que antes eram masculinos, o que as deixaram mais confiantes e livres. Trabalhar não era mais uma prática limitada às mulheres pobres ou um passatempo terapêutico de socialites, se tornou aberto a qualquer mulher interessada em desenvolver e expressar suas habilidades, sejam quais fossem. Nos anos 50, um retrocesso: Designing Woman, de 1957, é um filme parecido com Woman of the Year, mas quem faz par com o jornalista esportivo interpretado por Gregory Peck é a personagem ultra-feminina de Lauren Bacall, uma estilista de moda que, ao contrário da desenvoltura que Tess demonstra no jogo de beisebol, mal consegue assistir uma luta de boxe sem desmaiar. Imagine o que a Bacall de To Have And Have Not não pensaria dessa frescura toda – ou Bacall em The Big Sleep, em Dark Passage, etc.. Nos anos 40, a coragem era um privilégio tanto feminino quanto masculino. É apenas em nível de igualdade – reforçando, sem nenhum ser superior ou inferior ao outro – que pode haver respeito, admiração e um amor duradouro.

Há, é claro, o risco de uma confiança excessiva decorrente da independência, mas pode acontecer de ambos os lados: o homem que se acha grande coisa acaba abusando da mulher, a mulher que fica confiante demais acaba emasculando o homem. Aqui, a igualdade não se refere a uma necessidade de que os papéis se desfaçam por completo (homens agindo como mulheres, mulheres agindo como homens ou todo mundo agindo de uma forma unissex), mas uma igualdade no que se refere ao respeito e ao amor. Em His Girl Friday, de 1940, o personagem de Cary Grant explora o talento da jornalista (e ex-mulher) para sabotar o seu segundo casamento e a aposentadoria subsequente. Além de respeitar a sua capacidade profissional como faria com “um dos rapazes” (na peça que inspirou o filme, adaptada de forma mais fiel por Billy Wilder em The Front Page, o papel original de Rosalind Russell era de um homem), ele sabe que ela só pode ser feliz fazendo o que ama – e, de preferência, ao lado dele. No ideal feminino de Howard Hawks, a profissão ou a iniciativa de uma mulher não significam que ela tenha de ser desprovida de atributos femininos ou charme. Suas personagens são sensíveis e vulneráveis, mas também fortes e enérgicas. Afinal, como o gesto de Hepburn em abandonar a carreira para cuidar de Tracy, a vida real é muito mais complexa do que acatar definições de feminista ou anti-feminista.

É tal complexidade, tal equilíbrio entre caraterísticas diversas (como ser forte e vulnerável ao mesmo tempo) que Tess não consegue compreender. Em Woman of the Year, ela é agressiva em excesso até na forma de seduzir – situação que Sam só pode contornar se resistir aos seus avanços. A “mulher do ano” (prêmio que recebe mais adiante no filme) o leva ao seu apartamento depois de um encontro, demonstra que espera que ele passe a noite e que os dois façam sexo (o diretor não deixa explícito, mas entendemos a indireta dada pela fotografia de duas silhuetas que se unem). Enquanto ela vai até o quarto, Sam decide ir embora de fininho, se esquecendo até do chapéu. Depois, ele explica que, dadas as circunstâncias da última noite, só haveria uma mulher no mundo que ele poderia ter recusado da forma como recusou: aquela com quem ele pretende se casar. Com uma postura mais antiga e tradicional do que a de Tess, sua evasão era um sinal de respeito e honra. Os dois decidem se casar, ainda que de forma apressada e um tanto sem graça. A partir daí, a carreira movimentada de Tess sempre atrapalha a relação (e até a intimidade) dos dois. Sam é tratado como secretário, como empregado, como acessório… Tudo por causa da prepotência de sua esposa em achar que o que ela faz é muito mais importante – e que, portanto, ela é muito mais importante. O casamento dos dois deixa de ser uma união de alegrias e tristezas compartilhadas e se transforma em um relacionamento (ruim) entre patroa e funcionário. Sam vai ficando cada vez mais desiludido, até que decide se mudar. Em sua ausência, Tess começa a perceber que todo o seu sucesso profissional não vale nada se não puder compartilhar com alguém.

Samurai II: Duel at Ichijoji Temple, 1955

21 maio

No primeiro filme da trilogia Samurai, Takezo canaliza toda a sua impetuosidade em algo últil e se torna Musashi Miyamoto, um samurai concentrado e de força extraordinária. Samurai II: Duel at Ichijoji Temple dá prosseguimento à sua educação, mas com algumas tentações pelo caminho. Buscando aperfeiçoar suas habilidades, Musashi desafia todos os espadachins de renome que encontra. Após um duelo bem sucedido, um velhinho que presenciou a batalha comenta sobre o seu uso excessivo de força, dizendo que um samurai é muito mais complexo do que isso. Abismado, Musashi percebe que ainda tem muito a aprender – inclusive a como ser mais vulnerável, paciente e caridoso.

Se o primeiro filme mostra a transformação de Takezo em um homem de verdade, o segundo lida com o ajuste de sua personalidade irascível em um cavalheiro – que é a verdadeira constituição de um samurai. De volta à Kyoto, ele reencontra os personagens do seu passado, inclusive Otsu que há anos esperava pacientemente pelo seu retorno. Como um James Bond nipônico, todas as mulheres que conhece ficam perdidamente apaixonadas por ele, mas Otsu é a única que tem a capacidade de fazê-lo desistir de sua jornada solitária.

Se Musashi representa o homem ideal, somente Otsu, com sua perseverança e a pureza de seu amor, pode ser seu par. Utilizando exemplos opostos de conduta, o diretor Hiroshi Inagaki reforça qual é o modelo a seguir. A covardia e a indulgência de Matahachi são opostas à coragem e ao senso de dever de Musashi; a atração doentia que Akemi sente é contrária à dedicação generosa de Otsu. De novo, há a ideia de que a felicidade só é possível se obedecermos um guia moral. O caminho correto a percorrer não é totalmente livre de percalços, mas aqueles que não consideram um padrão ético (a ser obedecido na prática) só provocam sofrimentos desnecessários e estéreis a eles mesmos.

Para se tornar um samurai completo, Musashi precisa aprender a ser “mais fraco”. Aceitar (e consumar), enfim, o seu amor por Otsu pode torná-lo mais vulnerável – e, paradoxalmente, um guerreiro melhor e mais forte. O perigo está na possibilidade de se apegar a esse sentimento de uma forma desmedida e que só provoque desonrosa e vergonha aos dois. Em uma das cenas finais do filme, como em um haiku, Inagaki utiliza as imagens da natureza para ilustrar o que Musashi sente por Otsu: uma torrente crescente no rio próximo ao casal, que só se acalma quando Musashi percebe, consternado, que seu aprendizado ainda não acabou.

Warm Bodies, 2013

17 maio

Se comparados com vampiros e lobisomens, os zumbis são criaturas recentes. Com origem no vodu haitiano (que inspirou ao menos um filme excelente, I Walked with a Zombie, de 1943), os zumbis que conhecemos não mais como coitados enfeitiçados, mas como mortos-vivos devoradores de cérebro só foram aparecer em 1968 com Night of the Living Dead. Inspirado no romance I Am Legend, o diretor George Romero deu início a toda uma sub-cultura passível de análises. Filmes como Dawn of the Dead (1978) e Day of the Dead (1985), por exemplo, foram interpretados como críticas sociais ao militarismo e ao consumo. Já o recente Warm Bodies oferece uma leitura muito mais pessoal do que social: são os muros que construímos em volta de nós mesmos que nos mortificam, e os relacionamentos que nos tornam vivos.

Já faz alguns anos que há uma saturação de produtos relacionados aos mortos-vivos, como livros, quadrinhos, seriados, videogames, etc., o que só dificulta a possibilidade de inovar em algo. Zumbis inteligentes ou mais humanizados não são lá uma grande novidade. No próprio Day of the Dead, o zumbi Bub retém memórias da sua existência pregressa. Em Land of the Dead (2005), os mortos se organizam em grupo contra os vivos. Comédias como Shaun of the Dead (2004) e Fido (2006) tratam da possibilidade de uma convivência amistosa entre mortos e vivos. A novidade de Warm Bodies está no uso da comédia romântica, na versão inesperada de Romeu (o protagonista “R”, zumbi) e Julieta (Julie, viva).

Logo no começo do filme, “R” (que esqueceu qual era o seu nome, mas acha que começava com a letra “R”) narra os seus pensamentos: reclama do tédio de ficar andando a esmo, trombando em outros zumbis, do incômodo que é se comunicar através de grunhidos, e da solidão. Como WALL-E, ele coleciona objetos que encontra pelo aeroporto por onde fica vagando. Para se sentir mais perto da humanidade, escuta músicas em um avião abandonado que adotou como casa. Ele é como um adolescente solitário, sem rumo definido e com uma dificuldade extrema de se expressar. Um dia, encontra Julie e se apaixona à primeira vista. O convívio dos dois vai fazendo com que “R” volte lentamente à vida, mas tanto humanos como zumbis não estão prontos para aceitar a união.

Escrito e dirigido por Jonathan Levine, Warm Bodies não é um primor, tem problemas de ritmo e uma ou duas piadas que poderiam ter sido excluídas. Parece o tipo de conceito que funcionaria melhor em um curta-metragem, ou então em um longa com um roteiro mais bem elaborado. Há fragmentos de ideias espalhados que, apesar de mal conectados com o resto, são muito bons (como a brincadeira do casal de um tentar bater na mão do outro, sendo que mortos-vivos não possuem reflexos lá muito rápidos). O filme acaba conquistando pela sensibilidade de um protagonista incomum e pela atuação de Nicholas Hoult como “R”. Sua expressão vai se alterando de formas sutis e minuciosas ao longo da trama e seu timing cômico é surpreendente para um ator tão jovem.

Samurai I: Musashi Miyamoto, 1954

15 maio

Há no Japão, assim como no Brasil, uma fusão de crenças diversas – com a diferença, é claro, do Japão ser muito mais antigo. Antes dos primeiros portugueses católicos chegarem em 1549, já havia o xintoísmo, o budismo e o confucionismo. Até hoje, os japoneses praticam rituais de religiões diferentes no dia a dia. Existe uma certa convergência entre as práticas, mas também conflitos. Para compreender um pouco da estética e do espírito japonês, é preciso ter a capacidade de aceitar tais paradoxos que lhes são familiares há tanto tempo. Wabi-sabi, por exemplo, é um conceito de origem budista que fala da beleza do que é imperfeito, transitório ou incompleto, valorizando assimetrias e irregularidades (isto é, o contrário da Proporção Áurea ocidental, em que o perfeito tem de ser matematicamente perfeito). Na base de toda história de samurai, talvez o maior ícone que temos do Japão, há outro conflito: a obrigação social, o dever (giri) versus o sentimento, a vontade própria (ninjo). Muitas vezes, a consciência (que é um guia moral de origem divina) discorda daquilo que é esperado do samurai, gerando um paradoxo.

Como os caubóis americanos, os samurais tinham de viver de acordo com um certo código de conduta ou então não eram dignos de suas próprias vidas. Não bastava ser forte ou corajoso, era preciso saber como se portar com discernimento e humildade diante dos conflitos. Samurai I: Musashi Miyamoto, o primeiro de uma trilogia, trata da transformação de Takezo, um homem jovem de muita disposição e de pouco juízo, no samurai Musashi. Interpretado pelo ator Toshiro Mifune (mais conhecido pelos filmes de Akira Kurosawa como Seven SamuraiRashomon), Musashi é uma figura histórica que teve as suas aventuras romanceadas em 1935 por Eiji Yoshikawa. O romance de quase mil páginas (na versão americana) foi adaptado para o cinema pelo diretor Hiroshi Inagaki. O primeiro filme ganhou um prêmio especial do Oscar em 1955.

Depois de perderem a batalha de Sekigahara, Takezo e Matahachi se escondem na cabana de uma viúva e sua filha que, como as personagens em Onibaba de 1964, vivem do que roubam dos derrotados. Sem nenhuma presença masculina a não ser a dos mortos, as duas se encantam com a impetuosidade de Takezo. “Você me faz sentir como uma mulher,” diz a viúva. Matahachi, em comparação, se revela covarde e imoral ao desrespeitar o compromisso que tinha com sua noiva Otsu e casar com a viúva rejeitada. De volta à vila para contar à mãe de Matahachi e Otsu que ele está vivo, Takezo é perseguido como se tivesse abandonado seu companheiro no campo de batalha. Capturado por um monge budista e pendurado em uma árvore por dias, Otsu se apaixona por ele. É através do sacrifício de Otsu (e também da tutelagem do monge) que Takezo começa a se tornar Musashi, mas ele tem escolher entre o amor e o caminho que precisa seguir sozinho como samurai.

Filmes de samurais, assim como os faroestes, são bons em fornecer exemplos fortes e íntegros de masculinidade. Muitas vezes, tais exemplos são oferecidos já prontos (como John Wayne na maioria dos filmes de John Ford, por exemplo). Samurai I vale principalmente por mostrar o processo necessário para que um homem se torne um homem – o que envolve alguma humilhação, bastante estudo e o amor de uma mulher. Talvez seja preciso colocar essas coisas de lado para seguir adiante, mas não haveria futuro sem elas. Além disso, há a noção de que o único caminho para a felicidade, mesmo com todos os conflitos e paradoxos, é sendo moral. Matahachi foi incapaz de escutar a própria consciência, cometeu o erro de se casar com a viúva mesmo estando compromissado e passou a viver infeliz, mal-tratado pela mulher que não consegue respeitá-lo. Tudo isso o filme ensina sem ser didático ou simplista, com uma fotografia belíssima e atuações excelentes.