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3 Filmes Sobre Racismo

23 jul

‘Um dia, minha irmã Teddy perguntou, “O que você vai fazer? O que você gostaria de fazer quando crescer?” E eu lembro – naquela época, eu tinha uns doze anos – eu disse para minha irmã que gostaria de ir para Hollywood e me tornar um caubói.

Eu tinha acabado de ver o meu primeiro filme – era um faroeste, é claro – e achei que era a coisa mais impressionante. Eu não fazia ideia de que Hollywood significava show business. Eu pensava que Hollywood era onde criavam vacas, onde usavam os cavalos para manter o gado encurralado, e onde os caubóis eram os mocinhos, e combatiam os bandidos que tentavam roubar o gado ou fazer algo contra os donos do gado, e eu queria fazer esse tipo de trabalho.

Teddy riu, mas ela não riu de mim; ela riu comigo… Tenho certeza de que ela deve ter achado maravilhoso eu ter esse sonho fantástico, mas ela não me corrigiu, ela não disse, “Essa é uma fantasia maluca.” Ela não disse, “Quem você pensa que é? Cara, você precisa colocar os pés no chão. Menino, você tem muito pela frente.” Não, ela obviamente tinha sonhos também.

Uns dez anos depois, minha família se reuniu em um cinema em Nassau para assistir ao primeiro filme que eu fiz, chamado No Way Out. Isso foi em 1950, e foi a primeira vez que meus pais viram um filme. Para eles, deve ter sido como uma fantasia, um sonho.’  Sidney Poitier, The Measure of a Man: A Spiritual Autobiography.

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– No Way Out, 1950

Escrito e dirigido por Joseph L. Manckiewicz (do premiado All About Eve), Poitier interpreta Dr. Brooks, um médico encarregado de dois irmãos brancos e suspeitos de roubo, feridos em confronto com a polícia. Um deles morre e o que sobrevive, o racista Ray (Richard Widmark) acusa Dr. Brooks de tê-lo matado de propósito. Só uma autópsia pode comprovar a verdadeira causa da morte, mas Ray não quer autorizar o procedimento e, mesmo sem provas, acredita na culpa do médico.

Antecipando em vários anos a discussão que só se tornaria mais aberta em meados da década de 60, Manckiewicz aborda o racismo de forma complexa e sutil, fornecendo exemplos variados de todo tipo de conduta; o bandido branco abertamente racista, o médico branco que acredita na igualdade, o diretor do hospital que quer beneficiar os negros, o médico negro que não quer ser beneficiado e sim tratado como um médico qualquer, o ascensorista negro que é tão racista quanto o bandido, etc..

Muito melhor do que uma série de argumentos lógicos comprovando que o racismo não faz o menor sentido, o filme revela o mesmo de forma emocional e, portanto, com um efeito muito mais poderoso e duradouro.

O filme inteiro está disponível no youtube.

The Defiant Ones, 1958

Vencedor de dois Oscar e dirigido por Stanley Kramer (do excelente Judgment at Nuremberg), dois prisioneiros acorrentados um ao outro, um negro (Poitier) e um branco (Tony Curtis), precisam cooperar para escapar da polícia. No início, brigam muito, mas as correntes os colocam em situações em que são obrigados a trabalhar juntos para que possam, de forma figurada e literal, sair do buraco. Por boa parte do filme, tudo o que eles querem é se separar e seguir caminhos diferentes, mas quando as correntes finalmente se vão, há outro tipo de laço que os mantém conectados.

Há uma participação breve, mas crucial de Lon Chaney Jr. como Big Sam. Sem relevar muito, seu personagem reforça a importância do ato de tentar entender 0 que temos de semelhante com relação aos outros e de fazer por eles aquilo que gostaríamos que alguém fizesse por nós se estivéssemos na mesma situação. Tal postura é o que faz com que avancemos muito além de qualquer tipo de discriminação.

Trailer do filme aqui.

In the Heat of the Night, 1967

Um homem é assassinado e tem a carteira roubada na madrugada de Sparta, Mississippi. Por ser negro e carregar muito dinheiro, Virgil Tibbs (Poitier) é apreendido na estação de trem e levado até à delegacia. Lá, o xerife Gillespie (Rod Steiger) descobre embasbacado que Tibbs é um detetive da Filadélfia, de passagem apenas para visitar a mãe. Perito criminal, Tibbs acaba ficando em Sparta para ajudar a solucionar o crime, mas sua presença na cidade sulista não é bem vista por todo mundo.

Há uma cena em que Tibbs é levado de viatura (no banco da frente, não onde sentam os criminosos) até uma plantação de algodão para interrogar um dos suspeitos que lembra muito a cena de Django Unchained em que Django aparece à cavalo em meio aos coitados dos escravos. Em In the Heat of the Night, o contexto é supostamente moderno, mas a surpresa dos negros em ver a figura do detetive em relação de igualdade com o xerife não é menor.

Como em The Defiant Ones, as circunstâncias forçam com que os dois trabalhem juntos apesar de qualquer preconceito que um possa ter pelo outro. Em dado momento, até Tibbs se revela um pouco preconceituoso. Afinal, ignorância não é exclusividade de brancos. Tudo o que nenhum dos dois quer, no final das contas, é ser tratado de forma diferente – seja com desprezo ou com piedade.

O filme inteiro, e com legendas disponíveis em português, aqui.

Under Capricorn, 1949

5 jun

Às vezes, os franceses acertam. Neste ano, escolheram Spielberg como presidente do júri em Cannes e homenagearam Jerry Lewis. Quando erram, acabam elogiando todo capricho escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, mas vamos nos concentrar nos acertos. A Cahiers du Cinema foi uma das grandes responsáveis pelo reconhecimento da obra de Alfred Hitchcock quando ninguém lhe dava o devido crédito. Entre os filmes do diretor, Under Capricorn foi um dos mais execrados pelo público americano e, ao mesmo tempo, um dos mais admirados pelos críticos franceses. Em 1958, foi escolhido pela Cahiers como um dos dez melhores filmes de todos os tempos – um exagero, é verdade, mas o fracasso nos Estados Unidos foi injusto.

Ambientado no início do século XIX, Under Capricorn conta a história do irlandês Charles Adare (Michael Wilding) que viaja à Austrália para fazer fortuna com o auxílio de seu primo, governador da colônia. Lá, ele encontra o latifundiário (e ex-presidiário) Sam Flusky (Joseph Cotten) e sua esposa de origem nobre Henrietta (Ingrid Bergman). Um dos vários problemas do filme, e que pode ter irritado o público, é que ele demora para engrenar. A trama só começa de verdade quando Henrietta aparece pela primeira vez, com os pés descalços, frágil e embriagada, em um jantar social do marido. A vulnerabilidade de Bergman, tão dolorosa e cativante, lembra a sua atuação no excelente Gaslight, de 1944. Charles, assim como o espectador, se sente preocupado, curioso, atraído.

Parecido com o que acontece com a personagem de Joan Fontaine em Rebecca (1940), Henrietta é controlada por Milly, a governanta da casa. Seja para enfraquecê-la com a embriaguez ou torturá-la com a abstinência, ela dá e tira o álcool da patroa quando lhe convém. Seu intuito é prejudicar a sua reputação e derrubar qualquer iniciativa sua para, por fim, destrui-la por completo e assumir o seu lugar. Ela até tem uma tática especial para deixá-la ainda mais perturbada. Quando Charles aparece e devolve um pouco de confiança e vitalidade à Henrietta, Milly faz parecer que os dois têm um caso e que é melhor Sam mantê-la longe dele e sob controle: drogada, submissa, sem vida. Ela acha que ele deveria abandonar Henrietta para viver com alguém da mesma estirpe que a dela própria, alimentando nele um complexo de inferioridade, além de ciúmes.

Muito do que o filme informa é pela fala de Henrietta, como quando ela conta da época distante em que era alegre e adorava cavalgar (algumas cenas de Marnie, 1964, vem à mente) ou quando relembra, como em um monólogo sem corte, do seu casamento com Sam, que era um funcionário de sua família, e do motivo da sua fidelidade a ele. Filmado depois de Rope (1948), suspense com James Stewart que dá a ilusão de ser contínuo (há sim pouquíssimos cortes disfarçados aqui e ali), Hitchcock queria continuar experimentando com os longos planos-sequência. Jack Cardiff, diretor de fotografia lendário, disse que Under Capricorn foi a sua pior experiência em um set de filmagem porque a câmera tinha de passar por diversos cenários diferentes, precisando que ele iluminasse até oito cômodos ao mesmo tempo, com eletricistas seguindo uma série de deixas complexas, além das paredes que se moviam para abrir caminho. O resultado é de uma fluidez e de uma estabilidade impressionantes para a época, mas o estilo não serve nenhuma função à narrativa (ao contrário, por exemplo, de Citzen Kane, 1941, em que a linguagem é casada com o tema).

Joseph Cotten, que detestou o filme desde a produção, não está bem. Falta um ator que combinasse melhor imponência e ternura, como Laurence Olivier em Rebecca. Na verdade, a primeira escolha de Hitchcock para o papel de Sam Flusky era Burt Lancaster, que acabou não participando, mas teria sido magnífico. Mesmo assim, Under Capricorn vale pela atuação de Bergman e pela profundidade da trama que torna a expectativa do amor um pouco menos idealista e mais real. Em um momento ou outro, todos os personagens (até Milly) precisam se sacrificar uns pelos outro, tudo se complica, tudo parece mais difícil e mais complexo – mas é por isso mesmo que a promessa parece tão grandiosa. No fim, o triângulo amoroso precisa ser dissolvido e um dos homens precisa tomar aquela mesma decisão de Humphrey Bogart em Casablanca (1942) e permitir que Ingrid Bergman seja feliz com o outro.

Behind the Candelabra, 2013

28 maio

Antes de qualquer coisa, se diz homossexualismo e não homossexualidade – assim como jornalismo (e não jornalidade), capitalismo (e não capitalidade), budismo (e não budicidade) e atletismo (e não atleticidade). “Ismo” não é sufixo só de doença (como reumatismo), mas também de ideologia política, teoria filosófica, movimento artístico ou qualquer fenômeno sociológico. Ou seja, não há nada de ofensivo. É só a língua portuguesa. Resolvido isso, vamos falar de homossexualismo em si. Ou melhor, vamos falar do filme antes. Behind the Candelabra é, em tese, o último da carreira do diretor Steven Soderbergh e fala do relacionamento problemático entre Scott Thorson (Matt Damon) e Liberace (Michael Douglas), quarenta anos mais velho.

No início do filme, Scott vai para Las Vegas com um amigo assistir o show do pianista, fica admirado com o seu talento e acha graça quando ouve que ninguém sabe que ele é gay (mesmo estando coberto de brilho da cabeça aos pés). Por décadas, Liberace tentou manter a aparência de que era heterossexual, processando qualquer um que dissesse o contrário, mas sem deixar de acolher algum “protegé” jovem e bem-afeiçoado em sua mansão. Depois do show, Scott acaba lhe conhecendo em seu camarim e percebe seu interesse. Os dois ficariam juntos por seis anos, até Scott ser “demitido” e processar Liberace por uma pensão alimentícia (não se preocupem, esse não é o final).

Liberace, ou “Lee”, que vive com cachorrinhos de várias raças, diz que ama os animais porque eles gostam dos donos não importa o que aconteça – mas que talvez seja por isso mesmo que são apenas animais estúpidos. Quando Scott avisa que vai morar com Lee, sua mãe adotiva pergunta se ele sequer gosta dele (detalhe: ninguém sofre preconceito por ser gay, só os gays têm preconceito). Talvez não seja amor ainda, talvez seja uma combinação de vários outros fatores, inclusive o desejo de ter mais conforto, de viver uma aventura e, principalmente, de sanar uma carência muito mais profunda. Scott foi abandonado por sua família biológica e Lee, com o seu narcisismo, quer suprir as funções de amante, pai, irmão e melhor amigo.

Por um período, a relação vai bem. Lee gosta de cozinhar, Scott gosta de comer e os dois engordam felizes. Um dia, Lee se vê na televisão, decide que precisa de cirurgia plástica para rejuvenescer e chama o Dr. Jack Startz (Rob Lowe, melhor participação de todo o filme). Depois de uma recauchutagem geral que faz com que Liberace não consiga fechar os olhos para dormir, é a vez de Scott. Lee quer que ele opere o rosto para ficar parecido com ele mesmo, o que Scott acaba acatando desde que o médico faça um discreto furo no queixo, seu único pedido. Mais tarde, a mãe de Liberace (Debbie Reynolds) conta que ele tinha um irmão gêmeo que morreu. Não é possível afirmar com certeza se a sua necessidade de ver tanto de si mesmo ao seu redor é fruto de megalomania, de uma espécie de compensação pela morte do irmão ou coisa parecida, mas podemos dizer que seu relacionamento com Scott não é dos mais sadios. E quando Liberace decide adotá-lo só fica mais estranho.

Não há nada de errado entre duas pessoas que se amam – sejam homens, mulheres, brancos, negros, carteiros, tias, o que for – desde que realmente amem uma à outra e não se utilizem apenas como cura de mágoas não resolvidas ou para dar vazão a delírios egocêntricos. O homossexualismo é doença quando o outro é como um espelho; quando não se ama um indivíduo, mas uma projeção de si mesmo ou do que se gostaria de ser. Os amantes de Liberace são quase todos substituíveis. Há sempre alguém mais jovem, mais em forma, mais interessante. Seu “amor” não quer dizer nada – mas isso também não é um problema exclusivo dos homossexuais.

Por fim, Soderbergh consegue um resultado que é, ao mesmo tempo, engraçado, estranho e comovente. Em um momento, adoramos os personagens. Em outro, sentimos repulsa de como eles podem ser teimosos ou burros. E, em outro, ficamos com pena, emocionados. Junto de Magic Mike, são dois filmes do diretor de finais que surpreendem de tão morais – pois Liberace paga sim pelo seu estilo de vida, enquanto o fiel Scott é poupado. Infelizmente, Behind the Candelabra não pode concorrer ao Oscar (Michael Douglas seria um candidato fortíssimo) porque foi produzido pela emissora HBO e não vai passar nos cinemas dos Estados Unidos. Também não deve passar por aqui, mas já está pela internet.

A Perfect World, 1993

26 maio

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Assim como a grande literatura diz o indizível, o grande cinema revela o irrevelável – ambos têm a capacidade de expor algo de verdadeiro escondido sob a aparência das palavras ou das imagens. Na vida real, nem sempre paramos para contemplar a essência de cada questão ou para imaginar as pessoas ao nosso redor como se fossem personagens de seus próprios dramas, de onde vieram e para onde estão indo. Acreditamos no que for mais fácil, rápido e superficial. É a ficção que torna possível compreender melhor a realidade – que, em geral, é muito mais complexa do que imaginamos. Alguns poucos autores, sejam escritores ou diretores, conquistam uma falsa simplicidade: tratam dos personagens mais complexos com tanta clareza e precisão que até parece fácil reproduzir o resultado. A Perfect World, de Clint Eastwood, é um desses filmes “fáceis”, mas que só aparecem muito de vez em quando.

Passado no estado do Texas em 1963 (às vésperas do assassinato de Kennedy), Kevin Costner é Butch Haynes, um criminoso com algum senso moral que foge da prisão junto com Terry Pugh, lixo humano completo. Enquanto procuram por um carro de fuga, Terry invade a casa de uma família de testemunhas de Jeová onde estão três crianças e a mãe. Percebendo a falta de um homem que possa defender a mãe (a ausência do pai é importante), ele tenta estuprá-la, mas é interrompido de forma violenta por Butch e um vizinho armado não muito esperto. Com a confusão, os dois fogem levando Phillip, de oito anos, como refém. E assim começa a perseguição aos dois bandidos.

Comentando sobre o período em que o filme se passa, Eastwood disse que a nação estava “à beira de uma grande reviravolta em direção ao vazio”. Nos Estados Unidos, o assassinato de Kennedy é considerado como um divisor de águas, o fim da inocência. Em A Perfect World, a ruptura com os padrões antigos de pensar e agir não começa ainda em nível nacional, mas já se manifesta de forma individual. Tanto Phillip como Red Garnett (o próprio Eastwood no papel do Texas Ranger atrás dos foragidos) sairão completamente mudados.

Red conhece Butch e se sente responsável por ele. Anos atrás, tomou uma decisão que influenciou o rumo de sua vida, mas já não tem tanta certeza de ter feito a melhor escolha. Para a maioria dos policiais (e um agente seboso do FBI), tudo indica que Butch é um criminoso tão perigoso quanto Terry, se não pior. Eliminá-lo assim que possível é, para eles, a melhor forma de resolver logo a situação. Apenas Red e a criminologista Sally Gerber (Laura Dern) que, apesar de algumas evidências contrárias, insistem em confiar no caráter de Butch.

Sally estudou o passado conturbado de Butch e faz o exercício constante de se colocar em seu lugar para compreender suas motivações mais pessoais, prever quais serão os seus próximos passos e se ele representa algum perigo real ao menino. Em reunião com os colegas, ela narra sua infância em primeira pessoa, como se encarnasse o seu modo de falar, as suas memórias e os seus desejos. Fazendo isso, Sally obtém uma compreensão melhor da pessoa que ele é e de como, após tanto sofrimento, se tornou um criminoso.

O comportamento de Terry, contudo, não se justifica com um passado de miséria, mas com burrice e mau-caratismo puros. Não há nele um único impulso bondoso ou sensato. Desde gastar as últimas balas do revólver à toa até a tentativa de molestar o garoto sexualmente, tudo o que ele faz é estúpido ou odioso. Ainda que não apareça por muito tempo, tal personagem é importante ao filme porque, do contrário, daria a entender que todo criminoso é apenas um coitado incompreendido, uma vítima da sociedade. Não. Há aqueles que sentem prazer em serem maus ou que são muito burros para serem bons (e nem todos que são desse jeito se tornam bandidos, alguns encontram outras formas de praticar a maldade e a ignorância).

Enquanto a busca se encaminha, Butch e Phillip (ou “Buzz”, seu novo apelido) vão formando uma relação não tanto de sequestrador e refém, mas de pai e filho. Butch conhece a falta que um pai faz na vida de um garoto de oito anos e tenta ao máximo tratá-lo da forma como queria de ter sido tratado na mesma idade. Responde qualquer pergunta sinceramente e permite que ele tome as suas próprias decisões (inclusive se pretende seguir na viagem ou voltar para a mãe). Como Sally, Butch tem a capacidade de se colocar no lugar dos outros. Depois de roubar o carro de uma família, sente pena do dono, diz que não há nada mais corajoso do que trabalhar e criar os filhos enquanto outros fogem das obrigações. Preocupado com a formação do menino, ressalta que roubar é errado (mas não tão errado quando você realmente precisa de algo) e proporciona experiências que, como testemunha de Jeová, Phillip nunca teve permissão de fazer antes, como celebrar o Halloween ou comer doces.

Butch é simpático, mas não admite quem maltrata os filhos – e essa “intolerância” em particular vai lhe custar problemas graves. Tentando corrigir o comportamento de um fazendeiro que bate no filho pequeno, ele aponta a arma para a cabeça dele, manda que abrace o menino e diga a ele que o ama. Assustado, o fazendeiro diz que o filho sabe que o pai dele o ama, mas Butch insiste que ele fale mesmo assim. Algumas gerações anteriores (a do meu pai, por exemplo) foram criadas dessa forma, com rigidez e um amor verdadeiro, ainda que distorcido ou nunca declarado. Não que seja correto um homem adulto surrar uma criança de seis anos por não responder de imediato, mas era uma realidade que, muito provavelmente, foi transmitida pela geração passada como algo comum e até necessário. Aqui, o exercício de empatia seria “se eu apanhei quando criança e sobrevivi, por que não posso bater nos meus filhos?” Mas, é claro, não é tão simples assim – tentar entender os outros nunca é.

No fim do filme, depois da resolução do caso, Red diz que não sabe de coisa nenhuma (“I don’t know nothin’. Not one damn thing”), mas a dúvida não deve ser encarada como algo totalmente negativo – ela só permite um exercício maior de fé nas pessoas.

Samurai II: Duel at Ichijoji Temple, 1955

21 maio

No primeiro filme da trilogia Samurai, Takezo canaliza toda a sua impetuosidade em algo últil e se torna Musashi Miyamoto, um samurai concentrado e de força extraordinária. Samurai II: Duel at Ichijoji Temple dá prosseguimento à sua educação, mas com algumas tentações pelo caminho. Buscando aperfeiçoar suas habilidades, Musashi desafia todos os espadachins de renome que encontra. Após um duelo bem sucedido, um velhinho que presenciou a batalha comenta sobre o seu uso excessivo de força, dizendo que um samurai é muito mais complexo do que isso. Abismado, Musashi percebe que ainda tem muito a aprender – inclusive a como ser mais vulnerável, paciente e caridoso.

Se o primeiro filme mostra a transformação de Takezo em um homem de verdade, o segundo lida com o ajuste de sua personalidade irascível em um cavalheiro – que é a verdadeira constituição de um samurai. De volta à Kyoto, ele reencontra os personagens do seu passado, inclusive Otsu que há anos esperava pacientemente pelo seu retorno. Como um James Bond nipônico, todas as mulheres que conhece ficam perdidamente apaixonadas por ele, mas Otsu é a única que tem a capacidade de fazê-lo desistir de sua jornada solitária.

Se Musashi representa o homem ideal, somente Otsu, com sua perseverança e a pureza de seu amor, pode ser seu par. Utilizando exemplos opostos de conduta, o diretor Hiroshi Inagaki reforça qual é o modelo a seguir. A covardia e a indulgência de Matahachi são opostas à coragem e ao senso de dever de Musashi; a atração doentia que Akemi sente é contrária à dedicação generosa de Otsu. De novo, há a ideia de que a felicidade só é possível se obedecermos um guia moral. O caminho correto a percorrer não é totalmente livre de percalços, mas aqueles que não consideram um padrão ético (a ser obedecido na prática) só provocam sofrimentos desnecessários e estéreis a eles mesmos.

Para se tornar um samurai completo, Musashi precisa aprender a ser “mais fraco”. Aceitar (e consumar), enfim, o seu amor por Otsu pode torná-lo mais vulnerável – e, paradoxalmente, um guerreiro melhor e mais forte. O perigo está na possibilidade de se apegar a esse sentimento de uma forma desmedida e que só provoque desonrosa e vergonha aos dois. Em uma das cenas finais do filme, como em um haiku, Inagaki utiliza as imagens da natureza para ilustrar o que Musashi sente por Otsu: uma torrente crescente no rio próximo ao casal, que só se acalma quando Musashi percebe, consternado, que seu aprendizado ainda não acabou.

Samurai I: Musashi Miyamoto, 1954

15 maio

Há no Japão, assim como no Brasil, uma fusão de crenças diversas – com a diferença, é claro, do Japão ser muito mais antigo. Antes dos primeiros portugueses católicos chegarem em 1549, já havia o xintoísmo, o budismo e o confucionismo. Até hoje, os japoneses praticam rituais de religiões diferentes no dia a dia. Existe uma certa convergência entre as práticas, mas também conflitos. Para compreender um pouco da estética e do espírito japonês, é preciso ter a capacidade de aceitar tais paradoxos que lhes são familiares há tanto tempo. Wabi-sabi, por exemplo, é um conceito de origem budista que fala da beleza do que é imperfeito, transitório ou incompleto, valorizando assimetrias e irregularidades (isto é, o contrário da Proporção Áurea ocidental, em que o perfeito tem de ser matematicamente perfeito). Na base de toda história de samurai, talvez o maior ícone que temos do Japão, há outro conflito: a obrigação social, o dever (giri) versus o sentimento, a vontade própria (ninjo). Muitas vezes, a consciência (que é um guia moral de origem divina) discorda daquilo que é esperado do samurai, gerando um paradoxo.

Como os caubóis americanos, os samurais tinham de viver de acordo com um certo código de conduta ou então não eram dignos de suas próprias vidas. Não bastava ser forte ou corajoso, era preciso saber como se portar com discernimento e humildade diante dos conflitos. Samurai I: Musashi Miyamoto, o primeiro de uma trilogia, trata da transformação de Takezo, um homem jovem de muita disposição e de pouco juízo, no samurai Musashi. Interpretado pelo ator Toshiro Mifune (mais conhecido pelos filmes de Akira Kurosawa como Seven SamuraiRashomon), Musashi é uma figura histórica que teve as suas aventuras romanceadas em 1935 por Eiji Yoshikawa. O romance de quase mil páginas (na versão americana) foi adaptado para o cinema pelo diretor Hiroshi Inagaki. O primeiro filme ganhou um prêmio especial do Oscar em 1955.

Depois de perderem a batalha de Sekigahara, Takezo e Matahachi se escondem na cabana de uma viúva e sua filha que, como as personagens em Onibaba de 1964, vivem do que roubam dos derrotados. Sem nenhuma presença masculina a não ser a dos mortos, as duas se encantam com a impetuosidade de Takezo. “Você me faz sentir como uma mulher,” diz a viúva. Matahachi, em comparação, se revela covarde e imoral ao desrespeitar o compromisso que tinha com sua noiva Otsu e casar com a viúva rejeitada. De volta à vila para contar à mãe de Matahachi e Otsu que ele está vivo, Takezo é perseguido como se tivesse abandonado seu companheiro no campo de batalha. Capturado por um monge budista e pendurado em uma árvore por dias, Otsu se apaixona por ele. É através do sacrifício de Otsu (e também da tutelagem do monge) que Takezo começa a se tornar Musashi, mas ele tem escolher entre o amor e o caminho que precisa seguir sozinho como samurai.

Filmes de samurais, assim como os faroestes, são bons em fornecer exemplos fortes e íntegros de masculinidade. Muitas vezes, tais exemplos são oferecidos já prontos (como John Wayne na maioria dos filmes de John Ford, por exemplo). Samurai I vale principalmente por mostrar o processo necessário para que um homem se torne um homem – o que envolve alguma humilhação, bastante estudo e o amor de uma mulher. Talvez seja preciso colocar essas coisas de lado para seguir adiante, mas não haveria futuro sem elas. Além disso, há a noção de que o único caminho para a felicidade, mesmo com todos os conflitos e paradoxos, é sendo moral. Matahachi foi incapaz de escutar a própria consciência, cometeu o erro de se casar com a viúva mesmo estando compromissado e passou a viver infeliz, mal-tratado pela mulher que não consegue respeitá-lo. Tudo isso o filme ensina sem ser didático ou simplista, com uma fotografia belíssima e atuações excelentes.