Tag Archives: cahiers du cinema

Le Trou, 1960

16 jun

André Bazin, teórico da Cahiers du Cinema, defendia o realismo revelatório. Para que os filmes se assemelhassem mais à vida real (ainda que retratassem eventos incríveis, como em Le Trou), ele propunha o uso do plano-sequência e da profundidade de campo. O fluxo contínuo da imagem, aliado a uma noção de tempo e espaço mais fiel possível à realidade, aumentaria a carga dramática das cenas. Em qualquer programa de culinária, não é mostrado o desenvolvimento completo do prato (digamos, uma torta). O apresentador revela os ingredientes, as dosagens, o modo de preparo e, voilà, tira a torta pronta de dentro do forno. Ao seguir a exata mesma receita em casa é que teremos uma noção melhor do trabalho, da bagunça e da sujeira. A não ser em casos de coma ou amnésia, a vida real não costuma ter grandes elipses temporais e, infelizmente, também não temos assistentes de palco. Le Trou, de 1960, é assim: uma representação realista do esforço (e da agonia) que é tentar escapar de uma prisão – nos limites, é claro, de um filme de 130 minutos, mas que passam voando.

O diretor Jacques Becker, que morreu pouco depois de terminar o filme, adaptou a história de Jean Keraudy (que interpreta Roland, o de camisa preta na foto), inspiração do romance de um dos seus ex-companheiros de cela, José Giovanni. Além do próprio Keraudy, Becker fez questão de não escalar atores profissionais para os papéis dos outros quatro presidiários envolvidos em um plano de fuga complexo e trabalhoso, mas isso não prejudica as atuações em nada. Marc Michel é Claude Gaspard, um novato gentil e educado que é logo admitido no grupo da fuga, apesar dos outros não saberem bem se podem ou não confiar nele. Tirando a comida horrorosa (compensada com pacotes enviados pelos familiares com doces e até foie gras), não há em Le Trou aquele clichê de maus tratos na prisão – diferente de Brute Force (1947, Jules Dassin) ou The Hill (1965, Sidney Lumet). Ao contrário, há guardas que são até lenientes. Ao voltarem para a cela onde dois encanadores consertavam uma torneira, os presos percebem o sumiço de alguns cigarros e de duas cartelas de selos. Sabendo disso, o tenente Grinval permite que eles dêem uns sopapos nos encanadores até conseguirem as coisas de volta.

O clima relaxado entre os presidiários e os guardas, porém, logo começa a perturbar, dando uma sensação de falsa amizade e, portanto, falsa segurança. A medida em que o tempo passa e a fuga parece cada vez mais possível, é ainda mais urgente que todos os procedimentos para acobertar o plano sejam cumpridos à perfeição. É possível associar o filme de Becker ao realismo de Bazin no longo take em que, por exemplo, os presidiários começam a cavar um buraco no cimento do chão. Em filmes mais enganosos, haveria duas ou três marteladas, uma elipse, e um buraco enorme (como uma torta pronta em um programa culinário), coisa que quase sempre provoca um “até parece!” no espectador. Em Le Trou, vemos o primeiro arranhão se transformar em um buraco grande o suficiente para passar uma pessoa e, assim, temos uma noção de que aquilo é sim possível, além de exaustivo. Nos túneis subterrâneos da prisão, acompanhamos a a chama que os presos carregam por um longo corredor. A ausência de corte é o que transmite a sensação do caminho real a ser percorrido, de todas as etapas envolvidas – e saber de todo esse esforço é o que torna a fuga ainda mais almejável. Mesmo assim, o diretor nunca abusa do recurso, sabe bem quando a informação já foi transmitida e quando é o momento exato de passar para a próxima.

A engenhosidade dos presidiários, que aproveitam espelhos, escovas de dente, barbantes, etc., é uma das muitas graças do filme. Assim como no roubo das jóias em Rififi (1955, Dassin), a habilidade e cada passo do procedimento, seja para invadir ou fugir de algum lugar, são muito valorizados nos filmes franceses das décadas de 50 e 60. Mas, também como em Rififi, há o fator humano, capaz de destruir tudo o que foi conquistado. Nesse sentido, Le Trou é um filme que poderia se passar em qualquer país, em qualquer época; um suspense que é eficaz ainda hoje, feito de forma rigorosamente artística.

Under Capricorn, 1949

5 jun

Às vezes, os franceses acertam. Neste ano, escolheram Spielberg como presidente do júri em Cannes e homenagearam Jerry Lewis. Quando erram, acabam elogiando todo capricho escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, mas vamos nos concentrar nos acertos. A Cahiers du Cinema foi uma das grandes responsáveis pelo reconhecimento da obra de Alfred Hitchcock quando ninguém lhe dava o devido crédito. Entre os filmes do diretor, Under Capricorn foi um dos mais execrados pelo público americano e, ao mesmo tempo, um dos mais admirados pelos críticos franceses. Em 1958, foi escolhido pela Cahiers como um dos dez melhores filmes de todos os tempos – um exagero, é verdade, mas o fracasso nos Estados Unidos foi injusto.

Ambientado no início do século XIX, Under Capricorn conta a história do irlandês Charles Adare (Michael Wilding) que viaja à Austrália para fazer fortuna com o auxílio de seu primo, governador da colônia. Lá, ele encontra o latifundiário (e ex-presidiário) Sam Flusky (Joseph Cotten) e sua esposa de origem nobre Henrietta (Ingrid Bergman). Um dos vários problemas do filme, e que pode ter irritado o público, é que ele demora para engrenar. A trama só começa de verdade quando Henrietta aparece pela primeira vez, com os pés descalços, frágil e embriagada, em um jantar social do marido. A vulnerabilidade de Bergman, tão dolorosa e cativante, lembra a sua atuação no excelente Gaslight, de 1944. Charles, assim como o espectador, se sente preocupado, curioso, atraído.

Parecido com o que acontece com a personagem de Joan Fontaine em Rebecca (1940), Henrietta é controlada por Milly, a governanta da casa. Seja para enfraquecê-la com a embriaguez ou torturá-la com a abstinência, ela dá e tira o álcool da patroa quando lhe convém. Seu intuito é prejudicar a sua reputação e derrubar qualquer iniciativa sua para, por fim, destrui-la por completo e assumir o seu lugar. Ela até tem uma tática especial para deixá-la ainda mais perturbada. Quando Charles aparece e devolve um pouco de confiança e vitalidade à Henrietta, Milly faz parecer que os dois têm um caso e que é melhor Sam mantê-la longe dele e sob controle: drogada, submissa, sem vida. Ela acha que ele deveria abandonar Henrietta para viver com alguém da mesma estirpe que a dela própria, alimentando nele um complexo de inferioridade, além de ciúmes.

Muito do que o filme informa é pela fala de Henrietta, como quando ela conta da época distante em que era alegre e adorava cavalgar (algumas cenas de Marnie, 1964, vem à mente) ou quando relembra, como em um monólogo sem corte, do seu casamento com Sam, que era um funcionário de sua família, e do motivo da sua fidelidade a ele. Filmado depois de Rope (1948), suspense com James Stewart que dá a ilusão de ser contínuo (há sim pouquíssimos cortes disfarçados aqui e ali), Hitchcock queria continuar experimentando com os longos planos-sequência. Jack Cardiff, diretor de fotografia lendário, disse que Under Capricorn foi a sua pior experiência em um set de filmagem porque a câmera tinha de passar por diversos cenários diferentes, precisando que ele iluminasse até oito cômodos ao mesmo tempo, com eletricistas seguindo uma série de deixas complexas, além das paredes que se moviam para abrir caminho. O resultado é de uma fluidez e de uma estabilidade impressionantes para a época, mas o estilo não serve nenhuma função à narrativa (ao contrário, por exemplo, de Citzen Kane, 1941, em que a linguagem é casada com o tema).

Joseph Cotten, que detestou o filme desde a produção, não está bem. Falta um ator que combinasse melhor imponência e ternura, como Laurence Olivier em Rebecca. Na verdade, a primeira escolha de Hitchcock para o papel de Sam Flusky era Burt Lancaster, que acabou não participando, mas teria sido magnífico. Mesmo assim, Under Capricorn vale pela atuação de Bergman e pela profundidade da trama que torna a expectativa do amor um pouco menos idealista e mais real. Em um momento ou outro, todos os personagens (até Milly) precisam se sacrificar uns pelos outro, tudo se complica, tudo parece mais difícil e mais complexo – mas é por isso mesmo que a promessa parece tão grandiosa. No fim, o triângulo amoroso precisa ser dissolvido e um dos homens precisa tomar aquela mesma decisão de Humphrey Bogart em Casablanca (1942) e permitir que Ingrid Bergman seja feliz com o outro.

Le Corbeau, 1943

19 maio

Alguns dados importantes: Le Corbeau foi feito em 1943, durante a ocupação da França, pela produtora Continental Films, uma empresa alemã. Após a liberação do país, o diretor francês Henri-Georges Clouzot (DiaboliqueLe salaire de la peur) foi banido da indústria por dois anos, e os atores Pierre Fresnay e Ginette Leclerc chegaram a ser presos. Ter participado de Le Corbeau era como uma traição porque os franceses acreditavam que o filme era exibido aos alemães para ilustrar a decadência da França. Na verdade, o filme só não foi censurado pelos próprios nazistas justamente por ter sido produzido pela Continental. Para Eric Gans, professor de literatura francesa e crítico literário, Clouzot continuou a ser punido nas décadas seguintes pelos pensadores da Nouvelle Vague/Cahiers du Cinema, que consideravam Jean Renoir (La Grande Illusion, La règle du jeu) e Marcel Carné (Les enfants du paradis) muito superiores.

Em Le Corbeau, há um clima casual de imoralidade que é característico de obras francesas como o próprio La règle du jeu (1939) ou Jeux interdits (1952, de René Clement) – mas, ao contrário destes, possui um desfecho fortemente moral, indo contra todo o cinismo apresentado até então. Baseado em fatos reais, Clouzot conta a história de uma vila ameaçada por um remetente misterioso que envia cartas incriminatórias e assina como “O Corvo”. As denúncias vão de adultério até coisas mais graves, como o caso do obstetra Germain (Fresnay), acusado de abortista. De fato, Dr. Germain se preocupa mais com a saúde das mães do que a de seus bebês e, ao reclamar do barulho que as crianças fazem enquanto brincam, nos perguntamos se a acusação não tem mesmo algum fundamento.

Ao longo do filme, suspeitamos das ações e do caráter de todos – inclusive de uma freira ríspida, acusada de roubar morfina e de ter provocado o suicídio de um dos pacientes do hospital. A desconfiança não poupa ninguém, nem mesmo as crianças que mentem com extrema facilidade e fazem os adultos de bobos. Vorzet, o psiquiatra que ajuda na investigação que Germain iniciou a fim de limpar o próprio nome, diz que não é possível sermos totalmente maus ou bons, que há várias gradações de cinza entre a luz e a escuridão. Até então, o médico se recusava a acreditar nisso, mas mergulhado na podridão das denúncias, começa a duvidar de qualquer inocência ou bondade verdadeiras – até ser confrontado pela amante Denise (Leclerc) em uma bela cena.

Pelos suspenses que fez, Clouzot recebeu a alcunha de “Hitchcock francês”. Apesar do apelido ser questionável, é melhor não revelar muito sobre o desfecho de Le Corbeau, assim como devemos fazer quando falamos dos filmes de Hitchcock caso alguém ainda não tenha assistido. Basta dizer que, no fim, depois de tanta dúvida e cinismo, o diretor afirma a necessidade de julgar aos outros de forma moral (o que muitas vezes requer uma reação severa), mas fala também da importância do amor e da confiança nesse processo, que servem para garantir que não passemos a questionar tudo, inclusive o que é certo e verdadeiro. Só assim pode haver uma justiça que dê fim ao ódio e ao desespero generalizados – e é só assim que pode haver um futuro. Não é à toa que os nazistas não gostavam do filme.