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Under Capricorn, 1949

5 jun

Às vezes, os franceses acertam. Neste ano, escolheram Spielberg como presidente do júri em Cannes e homenagearam Jerry Lewis. Quando erram, acabam elogiando todo capricho escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, mas vamos nos concentrar nos acertos. A Cahiers du Cinema foi uma das grandes responsáveis pelo reconhecimento da obra de Alfred Hitchcock quando ninguém lhe dava o devido crédito. Entre os filmes do diretor, Under Capricorn foi um dos mais execrados pelo público americano e, ao mesmo tempo, um dos mais admirados pelos críticos franceses. Em 1958, foi escolhido pela Cahiers como um dos dez melhores filmes de todos os tempos – um exagero, é verdade, mas o fracasso nos Estados Unidos foi injusto.

Ambientado no início do século XIX, Under Capricorn conta a história do irlandês Charles Adare (Michael Wilding) que viaja à Austrália para fazer fortuna com o auxílio de seu primo, governador da colônia. Lá, ele encontra o latifundiário (e ex-presidiário) Sam Flusky (Joseph Cotten) e sua esposa de origem nobre Henrietta (Ingrid Bergman). Um dos vários problemas do filme, e que pode ter irritado o público, é que ele demora para engrenar. A trama só começa de verdade quando Henrietta aparece pela primeira vez, com os pés descalços, frágil e embriagada, em um jantar social do marido. A vulnerabilidade de Bergman, tão dolorosa e cativante, lembra a sua atuação no excelente Gaslight, de 1944. Charles, assim como o espectador, se sente preocupado, curioso, atraído.

Parecido com o que acontece com a personagem de Joan Fontaine em Rebecca (1940), Henrietta é controlada por Milly, a governanta da casa. Seja para enfraquecê-la com a embriaguez ou torturá-la com a abstinência, ela dá e tira o álcool da patroa quando lhe convém. Seu intuito é prejudicar a sua reputação e derrubar qualquer iniciativa sua para, por fim, destrui-la por completo e assumir o seu lugar. Ela até tem uma tática especial para deixá-la ainda mais perturbada. Quando Charles aparece e devolve um pouco de confiança e vitalidade à Henrietta, Milly faz parecer que os dois têm um caso e que é melhor Sam mantê-la longe dele e sob controle: drogada, submissa, sem vida. Ela acha que ele deveria abandonar Henrietta para viver com alguém da mesma estirpe que a dela própria, alimentando nele um complexo de inferioridade, além de ciúmes.

Muito do que o filme informa é pela fala de Henrietta, como quando ela conta da época distante em que era alegre e adorava cavalgar (algumas cenas de Marnie, 1964, vem à mente) ou quando relembra, como em um monólogo sem corte, do seu casamento com Sam, que era um funcionário de sua família, e do motivo da sua fidelidade a ele. Filmado depois de Rope (1948), suspense com James Stewart que dá a ilusão de ser contínuo (há sim pouquíssimos cortes disfarçados aqui e ali), Hitchcock queria continuar experimentando com os longos planos-sequência. Jack Cardiff, diretor de fotografia lendário, disse que Under Capricorn foi a sua pior experiência em um set de filmagem porque a câmera tinha de passar por diversos cenários diferentes, precisando que ele iluminasse até oito cômodos ao mesmo tempo, com eletricistas seguindo uma série de deixas complexas, além das paredes que se moviam para abrir caminho. O resultado é de uma fluidez e de uma estabilidade impressionantes para a época, mas o estilo não serve nenhuma função à narrativa (ao contrário, por exemplo, de Citzen Kane, 1941, em que a linguagem é casada com o tema).

Joseph Cotten, que detestou o filme desde a produção, não está bem. Falta um ator que combinasse melhor imponência e ternura, como Laurence Olivier em Rebecca. Na verdade, a primeira escolha de Hitchcock para o papel de Sam Flusky era Burt Lancaster, que acabou não participando, mas teria sido magnífico. Mesmo assim, Under Capricorn vale pela atuação de Bergman e pela profundidade da trama que torna a expectativa do amor um pouco menos idealista e mais real. Em um momento ou outro, todos os personagens (até Milly) precisam se sacrificar uns pelos outro, tudo se complica, tudo parece mais difícil e mais complexo – mas é por isso mesmo que a promessa parece tão grandiosa. No fim, o triângulo amoroso precisa ser dissolvido e um dos homens precisa tomar aquela mesma decisão de Humphrey Bogart em Casablanca (1942) e permitir que Ingrid Bergman seja feliz com o outro.