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Behind the Candelabra, 2013

28 maio

Antes de qualquer coisa, se diz homossexualismo e não homossexualidade – assim como jornalismo (e não jornalidade), capitalismo (e não capitalidade), budismo (e não budicidade) e atletismo (e não atleticidade). “Ismo” não é sufixo só de doença (como reumatismo), mas também de ideologia política, teoria filosófica, movimento artístico ou qualquer fenômeno sociológico. Ou seja, não há nada de ofensivo. É só a língua portuguesa. Resolvido isso, vamos falar de homossexualismo em si. Ou melhor, vamos falar do filme antes. Behind the Candelabra é, em tese, o último da carreira do diretor Steven Soderbergh e fala do relacionamento problemático entre Scott Thorson (Matt Damon) e Liberace (Michael Douglas), quarenta anos mais velho.

No início do filme, Scott vai para Las Vegas com um amigo assistir o show do pianista, fica admirado com o seu talento e acha graça quando ouve que ninguém sabe que ele é gay (mesmo estando coberto de brilho da cabeça aos pés). Por décadas, Liberace tentou manter a aparência de que era heterossexual, processando qualquer um que dissesse o contrário, mas sem deixar de acolher algum “protegé” jovem e bem-afeiçoado em sua mansão. Depois do show, Scott acaba lhe conhecendo em seu camarim e percebe seu interesse. Os dois ficariam juntos por seis anos, até Scott ser “demitido” e processar Liberace por uma pensão alimentícia (não se preocupem, esse não é o final).

Liberace, ou “Lee”, que vive com cachorrinhos de várias raças, diz que ama os animais porque eles gostam dos donos não importa o que aconteça – mas que talvez seja por isso mesmo que são apenas animais estúpidos. Quando Scott avisa que vai morar com Lee, sua mãe adotiva pergunta se ele sequer gosta dele (detalhe: ninguém sofre preconceito por ser gay, só os gays têm preconceito). Talvez não seja amor ainda, talvez seja uma combinação de vários outros fatores, inclusive o desejo de ter mais conforto, de viver uma aventura e, principalmente, de sanar uma carência muito mais profunda. Scott foi abandonado por sua família biológica e Lee, com o seu narcisismo, quer suprir as funções de amante, pai, irmão e melhor amigo.

Por um período, a relação vai bem. Lee gosta de cozinhar, Scott gosta de comer e os dois engordam felizes. Um dia, Lee se vê na televisão, decide que precisa de cirurgia plástica para rejuvenescer e chama o Dr. Jack Startz (Rob Lowe, melhor participação de todo o filme). Depois de uma recauchutagem geral que faz com que Liberace não consiga fechar os olhos para dormir, é a vez de Scott. Lee quer que ele opere o rosto para ficar parecido com ele mesmo, o que Scott acaba acatando desde que o médico faça um discreto furo no queixo, seu único pedido. Mais tarde, a mãe de Liberace (Debbie Reynolds) conta que ele tinha um irmão gêmeo que morreu. Não é possível afirmar com certeza se a sua necessidade de ver tanto de si mesmo ao seu redor é fruto de megalomania, de uma espécie de compensação pela morte do irmão ou coisa parecida, mas podemos dizer que seu relacionamento com Scott não é dos mais sadios. E quando Liberace decide adotá-lo só fica mais estranho.

Não há nada de errado entre duas pessoas que se amam – sejam homens, mulheres, brancos, negros, carteiros, tias, o que for – desde que realmente amem uma à outra e não se utilizem apenas como cura de mágoas não resolvidas ou para dar vazão a delírios egocêntricos. O homossexualismo é doença quando o outro é como um espelho; quando não se ama um indivíduo, mas uma projeção de si mesmo ou do que se gostaria de ser. Os amantes de Liberace são quase todos substituíveis. Há sempre alguém mais jovem, mais em forma, mais interessante. Seu “amor” não quer dizer nada – mas isso também não é um problema exclusivo dos homossexuais.

Por fim, Soderbergh consegue um resultado que é, ao mesmo tempo, engraçado, estranho e comovente. Em um momento, adoramos os personagens. Em outro, sentimos repulsa de como eles podem ser teimosos ou burros. E, em outro, ficamos com pena, emocionados. Junto de Magic Mike, são dois filmes do diretor de finais que surpreendem de tão morais – pois Liberace paga sim pelo seu estilo de vida, enquanto o fiel Scott é poupado. Infelizmente, Behind the Candelabra não pode concorrer ao Oscar (Michael Douglas seria um candidato fortíssimo) porque foi produzido pela emissora HBO e não vai passar nos cinemas dos Estados Unidos. Também não deve passar por aqui, mas já está pela internet.

Warm Bodies, 2013

17 maio

Se comparados com vampiros e lobisomens, os zumbis são criaturas recentes. Com origem no vodu haitiano (que inspirou ao menos um filme excelente, I Walked with a Zombie, de 1943), os zumbis que conhecemos não mais como coitados enfeitiçados, mas como mortos-vivos devoradores de cérebro só foram aparecer em 1968 com Night of the Living Dead. Inspirado no romance I Am Legend, o diretor George Romero deu início a toda uma sub-cultura passível de análises. Filmes como Dawn of the Dead (1978) e Day of the Dead (1985), por exemplo, foram interpretados como críticas sociais ao militarismo e ao consumo. Já o recente Warm Bodies oferece uma leitura muito mais pessoal do que social: são os muros que construímos em volta de nós mesmos que nos mortificam, e os relacionamentos que nos tornam vivos.

Já faz alguns anos que há uma saturação de produtos relacionados aos mortos-vivos, como livros, quadrinhos, seriados, videogames, etc., o que só dificulta a possibilidade de inovar em algo. Zumbis inteligentes ou mais humanizados não são lá uma grande novidade. No próprio Day of the Dead, o zumbi Bub retém memórias da sua existência pregressa. Em Land of the Dead (2005), os mortos se organizam em grupo contra os vivos. Comédias como Shaun of the Dead (2004) e Fido (2006) tratam da possibilidade de uma convivência amistosa entre mortos e vivos. A novidade de Warm Bodies está no uso da comédia romântica, na versão inesperada de Romeu (o protagonista “R”, zumbi) e Julieta (Julie, viva).

Logo no começo do filme, “R” (que esqueceu qual era o seu nome, mas acha que começava com a letra “R”) narra os seus pensamentos: reclama do tédio de ficar andando a esmo, trombando em outros zumbis, do incômodo que é se comunicar através de grunhidos, e da solidão. Como WALL-E, ele coleciona objetos que encontra pelo aeroporto por onde fica vagando. Para se sentir mais perto da humanidade, escuta músicas em um avião abandonado que adotou como casa. Ele é como um adolescente solitário, sem rumo definido e com uma dificuldade extrema de se expressar. Um dia, encontra Julie e se apaixona à primeira vista. O convívio dos dois vai fazendo com que “R” volte lentamente à vida, mas tanto humanos como zumbis não estão prontos para aceitar a união.

Escrito e dirigido por Jonathan Levine, Warm Bodies não é um primor, tem problemas de ritmo e uma ou duas piadas que poderiam ter sido excluídas. Parece o tipo de conceito que funcionaria melhor em um curta-metragem, ou então em um longa com um roteiro mais bem elaborado. Há fragmentos de ideias espalhados que, apesar de mal conectados com o resto, são muito bons (como a brincadeira do casal de um tentar bater na mão do outro, sendo que mortos-vivos não possuem reflexos lá muito rápidos). O filme acaba conquistando pela sensibilidade de um protagonista incomum e pela atuação de Nicholas Hoult como “R”. Sua expressão vai se alterando de formas sutis e minuciosas ao longo da trama e seu timing cômico é surpreendente para um ator tão jovem.

Side Effects, 2013

11 maio

Steven Soderbergh é um diretor estranho. Além da fotografia, é difícil encontrar muitas características em comum entre Traffic (2000) e Ocean’s Eleven (2001). Os temas de seus filmes vão da vingança (The Limey, 1999) ao striptease masculino (Magic Mike, 2012), de Che Guevara (Che, 2008) até Liberace (Behind the Candelabra, 2013). Há em sua filmografia, é claro, a presença constante de alguns atores como, por exemplo, Julia Roberts, George Clooney, Matt Damon e Michael Douglas. Fora isso, não há muita afinidade entre uma obra e outra – com exceção de Contagion (2011) e Side Effects (2013), que poderiam muito bem fazer parte de uma trilogia sobre saúde e paranóia se o diretor se propusesse a fazer mais um filme no mesmo estilo.

Side Effects tem Channing Tatum, Catherine Zeta-Jones e Jude Law, três atores que já haviam trabalhado com Soderbergh antes, e a “novata” do grupo, Rooney Mara. O filme é, de certa forma, dividido em dois: na primeira parte, acompanhamos a deprimida Emily (Mara) e, na segunda, ficamos com Dr. Jonathan Banks (Law), psiquiatra que lhe prescreve um anti-depressivo de efeitos colaterais perigosos. Revelar muito mais do que isso é estragar as várias surpresas porvir. Basta dizer que Rooney Mara rouba toda a atenção.

Bem diferente de Lisbeth Salander, sua personagem de The Girl with the Dragon Tattoo (2011), a atriz exibe uma vulnerabilidade tocante na primeira metade da trama. Só é necessário olhar para ela para conseguir entender a gravidade de uma depressão e quais são as angústias e os incômodos que assolam aqueles que sofrem da doença. Todos os sintomas estão lá: a tentativa (e o fracasso) de sair de casa e socializar, o choro sem motivo, a falta de desejo sexual, as ideias recorrentes de suicídio. De repente, tudo parece um convite sombrio: o acelerador do carro, os trilhos do metrô, uma faca afiada.

Sentimos empatia por Emily porque, como o filme bem mostra, todos nós já passamos por momentos difíceis, sejam problemas familiares, financeiros, etc.. Aprendemos a depender de remédios que tratem de nossas ansiedades e fobias, mas não é possível recriminar aqueles que buscam ajuda para funcionar de forma sadia na sociedade como recriminamos usuários de drogas ilícitas – ainda mais se já enfrentamos os mesmos sintomas que a personagem. É justamente esse sentimento de identificação e piedade que Soderbergh utiliza, na segunda metade do filme, como uma arma. Talvez nem todos sejam tão vulneráveis e complacentes assim.

Side Effects é um thriller – de ótima qualidade, mas um thriller. As verdades que encontra pelo caminho são abandonadas ou subvertidas por completo em prol do entretenimento, o que é uma escolha válida. Porém, entre as reviravoltas e as revelações bombásticas (todas elas eficazes e bem feitas), fica mesmo na memória a beleza da atuação de Mara na primeira parte, que lembra um pouco filmes sobre solidão e desajuste como Lost in Translation (2003) e até Shame (2011).

Soderbergh, afinal, melhorou muito de uns anos para cá. Parou de usar aqueles filtros estourados ora azulados, ora amarelados dos anos 2000 (foi Amélie Poulain quem começou com isso) e adicionou várias camadas de profundidade e complexidade às tramas. Até Magic Mike se revelou uma bela surpresa (este sim sem subverter nenhuma das verdades que encontra na inesperada história de um stripper querendo mudar o rumo da vida). Mas ainda falta um pouquinho, só mais um pouquinho.