Tag Archives: Oscar

3 Filmes Sobre Racismo

23 jul

‘Um dia, minha irmã Teddy perguntou, “O que você vai fazer? O que você gostaria de fazer quando crescer?” E eu lembro – naquela época, eu tinha uns doze anos – eu disse para minha irmã que gostaria de ir para Hollywood e me tornar um caubói.

Eu tinha acabado de ver o meu primeiro filme – era um faroeste, é claro – e achei que era a coisa mais impressionante. Eu não fazia ideia de que Hollywood significava show business. Eu pensava que Hollywood era onde criavam vacas, onde usavam os cavalos para manter o gado encurralado, e onde os caubóis eram os mocinhos, e combatiam os bandidos que tentavam roubar o gado ou fazer algo contra os donos do gado, e eu queria fazer esse tipo de trabalho.

Teddy riu, mas ela não riu de mim; ela riu comigo… Tenho certeza de que ela deve ter achado maravilhoso eu ter esse sonho fantástico, mas ela não me corrigiu, ela não disse, “Essa é uma fantasia maluca.” Ela não disse, “Quem você pensa que é? Cara, você precisa colocar os pés no chão. Menino, você tem muito pela frente.” Não, ela obviamente tinha sonhos também.

Uns dez anos depois, minha família se reuniu em um cinema em Nassau para assistir ao primeiro filme que eu fiz, chamado No Way Out. Isso foi em 1950, e foi a primeira vez que meus pais viram um filme. Para eles, deve ter sido como uma fantasia, um sonho.’  Sidney Poitier, The Measure of a Man: A Spiritual Autobiography.

1083_019851.jpg

– No Way Out, 1950

Escrito e dirigido por Joseph L. Manckiewicz (do premiado All About Eve), Poitier interpreta Dr. Brooks, um médico encarregado de dois irmãos brancos e suspeitos de roubo, feridos em confronto com a polícia. Um deles morre e o que sobrevive, o racista Ray (Richard Widmark) acusa Dr. Brooks de tê-lo matado de propósito. Só uma autópsia pode comprovar a verdadeira causa da morte, mas Ray não quer autorizar o procedimento e, mesmo sem provas, acredita na culpa do médico.

Antecipando em vários anos a discussão que só se tornaria mais aberta em meados da década de 60, Manckiewicz aborda o racismo de forma complexa e sutil, fornecendo exemplos variados de todo tipo de conduta; o bandido branco abertamente racista, o médico branco que acredita na igualdade, o diretor do hospital que quer beneficiar os negros, o médico negro que não quer ser beneficiado e sim tratado como um médico qualquer, o ascensorista negro que é tão racista quanto o bandido, etc..

Muito melhor do que uma série de argumentos lógicos comprovando que o racismo não faz o menor sentido, o filme revela o mesmo de forma emocional e, portanto, com um efeito muito mais poderoso e duradouro.

O filme inteiro está disponível no youtube.

The Defiant Ones, 1958

Vencedor de dois Oscar e dirigido por Stanley Kramer (do excelente Judgment at Nuremberg), dois prisioneiros acorrentados um ao outro, um negro (Poitier) e um branco (Tony Curtis), precisam cooperar para escapar da polícia. No início, brigam muito, mas as correntes os colocam em situações em que são obrigados a trabalhar juntos para que possam, de forma figurada e literal, sair do buraco. Por boa parte do filme, tudo o que eles querem é se separar e seguir caminhos diferentes, mas quando as correntes finalmente se vão, há outro tipo de laço que os mantém conectados.

Há uma participação breve, mas crucial de Lon Chaney Jr. como Big Sam. Sem relevar muito, seu personagem reforça a importância do ato de tentar entender 0 que temos de semelhante com relação aos outros e de fazer por eles aquilo que gostaríamos que alguém fizesse por nós se estivéssemos na mesma situação. Tal postura é o que faz com que avancemos muito além de qualquer tipo de discriminação.

Trailer do filme aqui.

In the Heat of the Night, 1967

Um homem é assassinado e tem a carteira roubada na madrugada de Sparta, Mississippi. Por ser negro e carregar muito dinheiro, Virgil Tibbs (Poitier) é apreendido na estação de trem e levado até à delegacia. Lá, o xerife Gillespie (Rod Steiger) descobre embasbacado que Tibbs é um detetive da Filadélfia, de passagem apenas para visitar a mãe. Perito criminal, Tibbs acaba ficando em Sparta para ajudar a solucionar o crime, mas sua presença na cidade sulista não é bem vista por todo mundo.

Há uma cena em que Tibbs é levado de viatura (no banco da frente, não onde sentam os criminosos) até uma plantação de algodão para interrogar um dos suspeitos que lembra muito a cena de Django Unchained em que Django aparece à cavalo em meio aos coitados dos escravos. Em In the Heat of the Night, o contexto é supostamente moderno, mas a surpresa dos negros em ver a figura do detetive em relação de igualdade com o xerife não é menor.

Como em The Defiant Ones, as circunstâncias forçam com que os dois trabalhem juntos apesar de qualquer preconceito que um possa ter pelo outro. Em dado momento, até Tibbs se revela um pouco preconceituoso. Afinal, ignorância não é exclusividade de brancos. Tudo o que nenhum dos dois quer, no final das contas, é ser tratado de forma diferente – seja com desprezo ou com piedade.

O filme inteiro, e com legendas disponíveis em português, aqui.

Samurai I: Musashi Miyamoto, 1954

15 maio

Há no Japão, assim como no Brasil, uma fusão de crenças diversas – com a diferença, é claro, do Japão ser muito mais antigo. Antes dos primeiros portugueses católicos chegarem em 1549, já havia o xintoísmo, o budismo e o confucionismo. Até hoje, os japoneses praticam rituais de religiões diferentes no dia a dia. Existe uma certa convergência entre as práticas, mas também conflitos. Para compreender um pouco da estética e do espírito japonês, é preciso ter a capacidade de aceitar tais paradoxos que lhes são familiares há tanto tempo. Wabi-sabi, por exemplo, é um conceito de origem budista que fala da beleza do que é imperfeito, transitório ou incompleto, valorizando assimetrias e irregularidades (isto é, o contrário da Proporção Áurea ocidental, em que o perfeito tem de ser matematicamente perfeito). Na base de toda história de samurai, talvez o maior ícone que temos do Japão, há outro conflito: a obrigação social, o dever (giri) versus o sentimento, a vontade própria (ninjo). Muitas vezes, a consciência (que é um guia moral de origem divina) discorda daquilo que é esperado do samurai, gerando um paradoxo.

Como os caubóis americanos, os samurais tinham de viver de acordo com um certo código de conduta ou então não eram dignos de suas próprias vidas. Não bastava ser forte ou corajoso, era preciso saber como se portar com discernimento e humildade diante dos conflitos. Samurai I: Musashi Miyamoto, o primeiro de uma trilogia, trata da transformação de Takezo, um homem jovem de muita disposição e de pouco juízo, no samurai Musashi. Interpretado pelo ator Toshiro Mifune (mais conhecido pelos filmes de Akira Kurosawa como Seven SamuraiRashomon), Musashi é uma figura histórica que teve as suas aventuras romanceadas em 1935 por Eiji Yoshikawa. O romance de quase mil páginas (na versão americana) foi adaptado para o cinema pelo diretor Hiroshi Inagaki. O primeiro filme ganhou um prêmio especial do Oscar em 1955.

Depois de perderem a batalha de Sekigahara, Takezo e Matahachi se escondem na cabana de uma viúva e sua filha que, como as personagens em Onibaba de 1964, vivem do que roubam dos derrotados. Sem nenhuma presença masculina a não ser a dos mortos, as duas se encantam com a impetuosidade de Takezo. “Você me faz sentir como uma mulher,” diz a viúva. Matahachi, em comparação, se revela covarde e imoral ao desrespeitar o compromisso que tinha com sua noiva Otsu e casar com a viúva rejeitada. De volta à vila para contar à mãe de Matahachi e Otsu que ele está vivo, Takezo é perseguido como se tivesse abandonado seu companheiro no campo de batalha. Capturado por um monge budista e pendurado em uma árvore por dias, Otsu se apaixona por ele. É através do sacrifício de Otsu (e também da tutelagem do monge) que Takezo começa a se tornar Musashi, mas ele tem escolher entre o amor e o caminho que precisa seguir sozinho como samurai.

Filmes de samurais, assim como os faroestes, são bons em fornecer exemplos fortes e íntegros de masculinidade. Muitas vezes, tais exemplos são oferecidos já prontos (como John Wayne na maioria dos filmes de John Ford, por exemplo). Samurai I vale principalmente por mostrar o processo necessário para que um homem se torne um homem – o que envolve alguma humilhação, bastante estudo e o amor de uma mulher. Talvez seja preciso colocar essas coisas de lado para seguir adiante, mas não haveria futuro sem elas. Além disso, há a noção de que o único caminho para a felicidade, mesmo com todos os conflitos e paradoxos, é sendo moral. Matahachi foi incapaz de escutar a própria consciência, cometeu o erro de se casar com a viúva mesmo estando compromissado e passou a viver infeliz, mal-tratado pela mulher que não consegue respeitá-lo. Tudo isso o filme ensina sem ser didático ou simplista, com uma fotografia belíssima e atuações excelentes.

La Grande Illusion, 1937

13 maio

La Grande Illusion foi o primeiro filme estrangeiro indicado ao Oscar de Melhor Filme (perdeu para You Can’t Take It With You, clássico de Frank Capra com James Stewart). Dirigido por Jean Renoir, filho do pintor impressionista, acompanha as tentativas de fuga de um grupo de prisioneiros na Primeira Guerra Mundial. O diretor austríaco Erich von Stroheim, autor de filmes perdidos como Greed e Queen Kelly (superprodução de 1929 com Gloria Swanson, que faz a sua patroa desequilibrada em Sunset Blvd.) interpreta o Capitão von Rauffenstein, comandante do campo alemão. Stroheim, que era uma grande influência para Renoir, teve liberdade para improvisar e contribuir com o roteiro, concebendo inclusive as roupas e o aparelho ortopédico de coluna de seu personagem. O aparelho limita os movimentos do pescoço e da cintura (provavelmente serviu de referência para o personagem de Mel Gibson em The Million Dollar Hotel, de Wim Wenders) e faz com que Rauffenstein, para conseguir tomar sua bebida, precise dobrar todo o tronco para trás em um único movimento rápido. Sua limitação física é irônica, dado todo o seu poder.

Muito antes de Stalag 17 (1953, dir. Billy Wilder) e The Great Escape (1963, dir. John Sturges), filmes sobre campos de prisioneiros americanos na Segunda Guerra Mundial, La Grande Illusion mostra uma convivência civilizada e até amistosa entre soldados alemães e capturados franceses. Na apresentação do filme, contudo, o próprio Renoir alerta que isso foi antes de Hitler, que os nazistas ainda não tinham arruinado “o espírito do mundo” e que a Primeira Guerra foi, de certa forma, “quase uma guerra de cavalheiros”. No filme, tudo o que os personagens fazem, de ambos os lados, é apenas pelo sentido de dever. Em uma cena, um soldado alemão baixinho tenta consolar o tenente Maréchal (Jean Gabin) preso na solitária. “Por que ele estava gritando?,” pergunta outro soldado. “A guerra é muito longa,” responde o baixinho um pouco entristecido.

O título pode se referir à ilusão de convivência e contentamento no campo de prisioneiros de guerra, à ideia de liberdade por trás das tentativas de fuga, ao diálogo em que Maréchal diz que não haverá outra grande guerra, ou mesmo ao poder de Rauffenstein. Renoir não queria que o significado fosse claro. André Bazin, em seu livro sobre o diretor, diz o seguinte: “As grandes ilusões são os sonhos que ajudam os homens a viver… mas, mais do que isso, as grandes ilusões são as ilusões de ódio, que dividem os homens de forma arbitrária e que, na realidade, não estão separados por nada; a ilusão das fronteiras, com as guerras que resultam delas; a ilusão das raças, das classes sociais… A guerra, o produto do ódio e da divisão, revela paradoxalmente a falsidade de todas as barreiras de preconceito que separam um homem do outro.” Como em The Big Parade (1925, dir. King Vidor), há em La Grande Illusion a crença de que o inimigo não é um monstro, mas alguém muito parecido com nós mesmos – uma crença difícil de ser recuperada desde o nazismo.

Além de abordar temas grandiosos como a fraternidade, o dever e o sacrifício, Renoir cuida de pequenos detalhes com muita sensibilidade e graça. Por exemplo: no campo, os prisioneiros organizam uma produção teatral. Abrindo um baú cheio de fantasias de mulher, eles falam sobre como as saias diminuíram ao longo dos anos, das esposas que os aguardam, etc.. Um deles pega as roupas e veste. Todos olham o resultado em silêncio, desacostumados com tal delicadeza (ainda que travestida). A cena é ao mesmo tempo cômica e triste – e há várias outras assim, que não chegam a influenciar a trama, mas que ajudam a provocar toda uma gama preciosa de sentimentos e sensações.

The Big Parade, 1925

30 abr

Além do relacionamento complicado com Greta Garbo, John Gilbert é conhecido também pelos filmes dramáticos que fez com a atriz, como os belíssimos Flesh and the Devil (1926) e Queen Christina (1933). Mas foi em 1925, com The Big Parade, que Gilbert alcançou a fama, interpretando um papel que não era totalmente desprovido de humor ou de seriedade. Dirigido por King Vidor (indicado ao Oscar de Melhor Diretor cinco vezes e vencedor de um prêmio honorário em 1979), o filme se tornou uma das maiores bilheterias da história do cinema mudo ao apresentar uma mistura inesperada de comédia, romance, suspense e drama.

Ambientado logo no começo da Primeira Guerra Mundial, Gilbert interpreta Jim, um jovem desocupado que se empolga com a onda de patriotismo (em um desfile pela cidade, os recrutas marcham ao som de “Over There”, marchinha composta por George M. Cohan, personagem real interpretado por James Cagney no emocionante Yankee Doodle Dandy, de 1942) e acaba se alistando, para o orgulho da família. Durante o treinamento, faz amizade com dois soldados pitorescos, Slim e Bull. Na França, conhece uma garota por quem se apaixona. Ele não fala francês, ela não fala inglês. É uma situação ideal para o humor do cinema mudo e para que os dois se entendam de forma menos complicada.

Gilbert, um pouco como Buster Keaton, consegue transmitir no rosto qualquer linha de raciocínio sem que grandes exageros expressivos sejam necessários. Seu timing cômico é perfeito e sua atuação ofusca as demais, inclusive a da francesa Renée Adorée. Há também, em The Big Parade, algo que era característico das obras de Keaton: o desdém pelo melodrama. Quando Jim e sua amada precisam se separar, ele lança a ela o seu relógio, a sua corrente, o seu sapato – fazendo graça do exagero inconsciente do ridículo que é típico do melodrama. Até esse momento, tudo é leve e engraçado. A guerra, afinal, não parece tão ruim assim – até Jim chegar ao front de batalha.

Vidor queria mostrar a guerra de forma realista, sem grandes conquistas, mas com grandes custos tanto para os “vencedores” como para os “perdedores”. No front, há uma caminhada quase que infindável, em que os soldados americanos precisam lidar com atiradores, metralhadoras, canhões… Alguns vão caindo mortos pelo caminho, sem mais nem menos, mas a linha de frente não pode parar. O absurdo da situação é chocante e torcemos para que Jim e seus amigos sobrevivam de alguma forma.

O horror que as cenas de guerra causam no espectador se dá por conta da leveza com que tudo ia sendo encarado até então. Afinal, ninguém sabia o que ia encontrar quando, num arroubo qualquer, resolveu se juntar ao exército. Hoje em dia, depois de tantos filmes, de tantas guerras (e de tantas guerras televisionadas), já temos uma noção, ainda que mínima, de quão aterrorizante pode ser. Naquela época, contudo, houve mesmo uma sensação de perda. Jim, como tantos outros, jamais seria o mesmo depois do que presenciou, especialmente depois de encarar o inimigo e ver alguém como ele mesmo.

O filme é convencional no que diz respeito ao posicionamento de câmera ou na forma de narrar a história (tanto Napoleon, de Abel Gance, como Wings, de Wellman são mais inovadores nesse sentido), mas foi o primeiro a mostrar a guerra de tal forma, causando um choque bastante interessante pela mistura de comédia e drama (sem confundir com melodrama) e com uma atuação excelente do jovem John Gilbert.