Arquivo | 1940s RSS feed for this section

Antoine et Antoinette, 1947

29 jun

Antoine et Antoinette, do mesmo diretor de Le Trou, é uma comédia romântica simples, que não chega a ter uma hora e meia de duração, mas extremamente adorável. Fazer uma análise muito profunda sobre o otimismo francês no pós-guerra ou as expectativas simplórias de um casal de “proletários” (aspas irônicas) é ir contra a proposta de Jacques Becker em criar uma história divertida e quase banal. Com um enredo parecido com o de Le Million, dirigido por René Clair, Antoinette é uma funcionária de uma loja de departamentos que compra um bilhete de loteria premiado, mas uma série de confusões faz com que seu marido Antoine, que desempenha uma função enervante em uma fábrica de livros, perca o bilhete pouco antes de buscar o prêmio.

Os dois moram em um apartamento modesto, sem lavabo e sem aquecimento central, na frente de uma quitanda. No dia-a-dia, uma série de problemas pequenos são resolvidos sem qualquer drama ou sofrimento (como o ferro elétrico que parou de esquentar e é substituído por um dos antigos, a antena quebrada no telhado que é consertada pelo próprio Antoine e os pedaços de jornal usados como palmilhas nos sapatos). Talvez, a dificuldade da Segunda Guerra tenha trazido uma paciência maior em lidar com incômodos insignificantes e aflorado uma percepção de que há coisas mais fundamentais para se preocupar – mas já estou analisando em excesso.

Antoinette é de uma beleza que atrai as atenções de todos os homens que encontra, inclusive a do Sr. Rolland, o dono da quitanda que costuma presenteá-la com os produtos da loja, prometendo uma vida melhor e sem tanto esforço. A insistência do quitandeiro e a atenção constante que ela recebe por todos os cantos provoca uma série de brigas entre o casal, mas eles logo fazem as pazes. Não há nada, afinal, que possa comprar o interesse de Antoinette e, mesmo entre os personagens secundários (como o dono do bar que nunca cobra nada de ninguém), dinheiro é a última coisa que importa.

Porém, quando Antoine percebe que perdeu o bilhete premiado – uma cena brilhante, em que um afinador de piano acaba criando uma trilha sonora de suspense no próprio local da ação – ele sente medo de que Antoinette finalmente o abandone. Inseguro, a memória de uma tarde no parque ganha outra interpretação. No passado, ele havia perguntado à esposa se ela poderia se apaixonar por outro, ela apenas olhou para ele e sorriu. Agora, relembrando, ele acredita que não foi bem assim, que ela apenas virou o rosto, sem reagir. A memória cria uma dúvida sem embasamento algum na realidade. Não é à toa que o filme ganhou o prêmio de melhor romance psicológico (“Prix du meilleur film psychologique et d’amour”) em Cannes.

O cinema é um jogo de expectativas. Em uma comédia romântica, esperamos que nada dê errado com os personagens de quem gostamos, mas um filme precisa de um conflito ou seria muito chato. Enquanto os dramas, em geral, frustram as nossas expectativas, as comédias começam no inferno e terminam no paraíso – por isso a “Comedia Divina”. Em Antoine e Antoinette, há vários momentos em que as coisas podem dar errado, como o trabalho perigoso que Antoine faz na fábrica, a cena em que ele sobe no telhado para consertar a antena, as várias discussões ameaçando o amor do casal, a perda do bilhete da loteria. É a tensão que Becker provoca em todo momento que torna a obra tão envolvente.

Além disso, Becker trata até os personagens mais irrelevantes à trama de forma humana e completa. Ninguém existe apenas para desempenhar determinada função, mas todos têm suas próprias personalidades e suas próprias histórias, como a moça que trabalha no guichê do metrô e nunca tem troco ou a filha do dono do bar que se casa e parece um pouco decepcionada com o noivo quando ele não aceita um dos charuto de seu pai. Há vários detalhes que parecem não ter importância alguma, mas que ajudam a estabelecer todo um universo precioso de conflitos e expectativas.

Under Capricorn, 1949

5 jun

Às vezes, os franceses acertam. Neste ano, escolheram Spielberg como presidente do júri em Cannes e homenagearam Jerry Lewis. Quando erram, acabam elogiando todo capricho escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, mas vamos nos concentrar nos acertos. A Cahiers du Cinema foi uma das grandes responsáveis pelo reconhecimento da obra de Alfred Hitchcock quando ninguém lhe dava o devido crédito. Entre os filmes do diretor, Under Capricorn foi um dos mais execrados pelo público americano e, ao mesmo tempo, um dos mais admirados pelos críticos franceses. Em 1958, foi escolhido pela Cahiers como um dos dez melhores filmes de todos os tempos – um exagero, é verdade, mas o fracasso nos Estados Unidos foi injusto.

Ambientado no início do século XIX, Under Capricorn conta a história do irlandês Charles Adare (Michael Wilding) que viaja à Austrália para fazer fortuna com o auxílio de seu primo, governador da colônia. Lá, ele encontra o latifundiário (e ex-presidiário) Sam Flusky (Joseph Cotten) e sua esposa de origem nobre Henrietta (Ingrid Bergman). Um dos vários problemas do filme, e que pode ter irritado o público, é que ele demora para engrenar. A trama só começa de verdade quando Henrietta aparece pela primeira vez, com os pés descalços, frágil e embriagada, em um jantar social do marido. A vulnerabilidade de Bergman, tão dolorosa e cativante, lembra a sua atuação no excelente Gaslight, de 1944. Charles, assim como o espectador, se sente preocupado, curioso, atraído.

Parecido com o que acontece com a personagem de Joan Fontaine em Rebecca (1940), Henrietta é controlada por Milly, a governanta da casa. Seja para enfraquecê-la com a embriaguez ou torturá-la com a abstinência, ela dá e tira o álcool da patroa quando lhe convém. Seu intuito é prejudicar a sua reputação e derrubar qualquer iniciativa sua para, por fim, destrui-la por completo e assumir o seu lugar. Ela até tem uma tática especial para deixá-la ainda mais perturbada. Quando Charles aparece e devolve um pouco de confiança e vitalidade à Henrietta, Milly faz parecer que os dois têm um caso e que é melhor Sam mantê-la longe dele e sob controle: drogada, submissa, sem vida. Ela acha que ele deveria abandonar Henrietta para viver com alguém da mesma estirpe que a dela própria, alimentando nele um complexo de inferioridade, além de ciúmes.

Muito do que o filme informa é pela fala de Henrietta, como quando ela conta da época distante em que era alegre e adorava cavalgar (algumas cenas de Marnie, 1964, vem à mente) ou quando relembra, como em um monólogo sem corte, do seu casamento com Sam, que era um funcionário de sua família, e do motivo da sua fidelidade a ele. Filmado depois de Rope (1948), suspense com James Stewart que dá a ilusão de ser contínuo (há sim pouquíssimos cortes disfarçados aqui e ali), Hitchcock queria continuar experimentando com os longos planos-sequência. Jack Cardiff, diretor de fotografia lendário, disse que Under Capricorn foi a sua pior experiência em um set de filmagem porque a câmera tinha de passar por diversos cenários diferentes, precisando que ele iluminasse até oito cômodos ao mesmo tempo, com eletricistas seguindo uma série de deixas complexas, além das paredes que se moviam para abrir caminho. O resultado é de uma fluidez e de uma estabilidade impressionantes para a época, mas o estilo não serve nenhuma função à narrativa (ao contrário, por exemplo, de Citzen Kane, 1941, em que a linguagem é casada com o tema).

Joseph Cotten, que detestou o filme desde a produção, não está bem. Falta um ator que combinasse melhor imponência e ternura, como Laurence Olivier em Rebecca. Na verdade, a primeira escolha de Hitchcock para o papel de Sam Flusky era Burt Lancaster, que acabou não participando, mas teria sido magnífico. Mesmo assim, Under Capricorn vale pela atuação de Bergman e pela profundidade da trama que torna a expectativa do amor um pouco menos idealista e mais real. Em um momento ou outro, todos os personagens (até Milly) precisam se sacrificar uns pelos outro, tudo se complica, tudo parece mais difícil e mais complexo – mas é por isso mesmo que a promessa parece tão grandiosa. No fim, o triângulo amoroso precisa ser dissolvido e um dos homens precisa tomar aquela mesma decisão de Humphrey Bogart em Casablanca (1942) e permitir que Ingrid Bergman seja feliz com o outro.

Woman of the Year, 1942

23 maio

Katharine Hepburn e Spencer Tracy se conheceram nas filmagens de Woman of the Year (1942) e permaneceram juntos até a morte de Tracy em 1967. Nunca se casaram, pois Tracy nunca se divorciou legalmente de sua primeira esposa, mas o carinho e a admiração que sentiam um pelo outro já eram visíveis no primeiro dos nove filmes que fizeram (que incluem Adam’s Rib e Guess Who’s Coming to Diner, o último deles). Ainda hoje, Katharine Hepburn é considerada por muitos como um ícone do feminismo. De fato, ela não se encaixava ao padrão de uma starlet comum. Além de interpretar personagens fortes e independentes, e de ter sido uma das primeiras mulheres famosas a ter o hábito de usar calças (depois de Marlene Dietrich), Hepburn controlou muitos aspectos da produção de alguns de seus maiores filmes, decidindo inclusive quem seriam os seus diretores e os seus coadjuvantes (Tracy foi uma escolha dela, junto do diretor George Stevens). A verdadeira essência das pessoas, contudo, é sempre mais complexa do que a capacidade que um rótulo tem de descrever alguém. Assim que o seu parceiro por mais de duas décadas adoeceu, Hepburn paralisou a carreira por cinco anos para cuidar exclusivamente dele, período que chamou depois de “o mais feliz de toda a minha vida”. Por coincidência ou não, Woman of the Year trata justamente sobre o relacionamento complicado entre duas pessoas inteligentes e ativas. Seja o homem ou a mulher, não é possível subjugar um às necessidades do outro. É preciso amor e dedicação de ambas as partes.

Spencer Tracy interpreta Sam, um jornalista esportivo que trabalha no mesmo jornal de Tess (Hepburn), responsável pela seção de política internacional. Um dia, Sam escuta Tess falando no rádio, dizendo que as pessoas deveriam gastar energia com assuntos mais importantes do que esportes. Os dois começam uma discussão pública em suas respectivas colunas, mas se sentem atraídos ao serem apresentados cara a cara. Querendo encerrar a briga de vez e conhecê-la melhor, Sam leva Tess para assistir um jogo de beisebol. Apesar de não entender nada, ela acaba se sentindo à vontade na cabine de imprensa dominada por homens. Tess retribui o convite e chama Sam para ir ao seu apartamento à noite. Imaginando que a levaria para jantar ou algo assim, leva flores, mas se depara com uma festa repleta de diplomatas, onde quase ninguém fala inglês. Ocupada ao extremo, Tess é uma figura muito mais poderosa do que Sam, lida todos os dias com vários chefes de estado, é fluente em espanhol, francês, alemão, grego e russo. Sam só fala inglês errado (“broken english”), o que assume rindo de si mesmo. Qualquer medroso se sentiria intimidado e desistiria por completo de Tess, mas Sam tem estrutura suficiente para aceitar o desafio. Se fosse hoje em dia, Tess teria uma dificuldade muito maior em encontrar alguém à altura.

Talvez por reflexo da Segunda Guerra Mundial, tanto homens como mulheres aparentavam ser mais fortes e mais corajosos nos filmes da década de 40. Com os homens nos campos de batalha, as mulheres passaram a se instruir mais e ocupar cargos que antes eram masculinos, o que as deixaram mais confiantes e livres. Trabalhar não era mais uma prática limitada às mulheres pobres ou um passatempo terapêutico de socialites, se tornou aberto a qualquer mulher interessada em desenvolver e expressar suas habilidades, sejam quais fossem. Nos anos 50, um retrocesso: Designing Woman, de 1957, é um filme parecido com Woman of the Year, mas quem faz par com o jornalista esportivo interpretado por Gregory Peck é a personagem ultra-feminina de Lauren Bacall, uma estilista de moda que, ao contrário da desenvoltura que Tess demonstra no jogo de beisebol, mal consegue assistir uma luta de boxe sem desmaiar. Imagine o que a Bacall de To Have And Have Not não pensaria dessa frescura toda – ou Bacall em The Big Sleep, em Dark Passage, etc.. Nos anos 40, a coragem era um privilégio tanto feminino quanto masculino. É apenas em nível de igualdade – reforçando, sem nenhum ser superior ou inferior ao outro – que pode haver respeito, admiração e um amor duradouro.

Há, é claro, o risco de uma confiança excessiva decorrente da independência, mas pode acontecer de ambos os lados: o homem que se acha grande coisa acaba abusando da mulher, a mulher que fica confiante demais acaba emasculando o homem. Aqui, a igualdade não se refere a uma necessidade de que os papéis se desfaçam por completo (homens agindo como mulheres, mulheres agindo como homens ou todo mundo agindo de uma forma unissex), mas uma igualdade no que se refere ao respeito e ao amor. Em His Girl Friday, de 1940, o personagem de Cary Grant explora o talento da jornalista (e ex-mulher) para sabotar o seu segundo casamento e a aposentadoria subsequente. Além de respeitar a sua capacidade profissional como faria com “um dos rapazes” (na peça que inspirou o filme, adaptada de forma mais fiel por Billy Wilder em The Front Page, o papel original de Rosalind Russell era de um homem), ele sabe que ela só pode ser feliz fazendo o que ama – e, de preferência, ao lado dele. No ideal feminino de Howard Hawks, a profissão ou a iniciativa de uma mulher não significam que ela tenha de ser desprovida de atributos femininos ou charme. Suas personagens são sensíveis e vulneráveis, mas também fortes e enérgicas. Afinal, como o gesto de Hepburn em abandonar a carreira para cuidar de Tracy, a vida real é muito mais complexa do que acatar definições de feminista ou anti-feminista.

É tal complexidade, tal equilíbrio entre caraterísticas diversas (como ser forte e vulnerável ao mesmo tempo) que Tess não consegue compreender. Em Woman of the Year, ela é agressiva em excesso até na forma de seduzir – situação que Sam só pode contornar se resistir aos seus avanços. A “mulher do ano” (prêmio que recebe mais adiante no filme) o leva ao seu apartamento depois de um encontro, demonstra que espera que ele passe a noite e que os dois façam sexo (o diretor não deixa explícito, mas entendemos a indireta dada pela fotografia de duas silhuetas que se unem). Enquanto ela vai até o quarto, Sam decide ir embora de fininho, se esquecendo até do chapéu. Depois, ele explica que, dadas as circunstâncias da última noite, só haveria uma mulher no mundo que ele poderia ter recusado da forma como recusou: aquela com quem ele pretende se casar. Com uma postura mais antiga e tradicional do que a de Tess, sua evasão era um sinal de respeito e honra. Os dois decidem se casar, ainda que de forma apressada e um tanto sem graça. A partir daí, a carreira movimentada de Tess sempre atrapalha a relação (e até a intimidade) dos dois. Sam é tratado como secretário, como empregado, como acessório… Tudo por causa da prepotência de sua esposa em achar que o que ela faz é muito mais importante – e que, portanto, ela é muito mais importante. O casamento dos dois deixa de ser uma união de alegrias e tristezas compartilhadas e se transforma em um relacionamento (ruim) entre patroa e funcionário. Sam vai ficando cada vez mais desiludido, até que decide se mudar. Em sua ausência, Tess começa a perceber que todo o seu sucesso profissional não vale nada se não puder compartilhar com alguém.

Le Corbeau, 1943

19 maio

Alguns dados importantes: Le Corbeau foi feito em 1943, durante a ocupação da França, pela produtora Continental Films, uma empresa alemã. Após a liberação do país, o diretor francês Henri-Georges Clouzot (DiaboliqueLe salaire de la peur) foi banido da indústria por dois anos, e os atores Pierre Fresnay e Ginette Leclerc chegaram a ser presos. Ter participado de Le Corbeau era como uma traição porque os franceses acreditavam que o filme era exibido aos alemães para ilustrar a decadência da França. Na verdade, o filme só não foi censurado pelos próprios nazistas justamente por ter sido produzido pela Continental. Para Eric Gans, professor de literatura francesa e crítico literário, Clouzot continuou a ser punido nas décadas seguintes pelos pensadores da Nouvelle Vague/Cahiers du Cinema, que consideravam Jean Renoir (La Grande Illusion, La règle du jeu) e Marcel Carné (Les enfants du paradis) muito superiores.

Em Le Corbeau, há um clima casual de imoralidade que é característico de obras francesas como o próprio La règle du jeu (1939) ou Jeux interdits (1952, de René Clement) – mas, ao contrário destes, possui um desfecho fortemente moral, indo contra todo o cinismo apresentado até então. Baseado em fatos reais, Clouzot conta a história de uma vila ameaçada por um remetente misterioso que envia cartas incriminatórias e assina como “O Corvo”. As denúncias vão de adultério até coisas mais graves, como o caso do obstetra Germain (Fresnay), acusado de abortista. De fato, Dr. Germain se preocupa mais com a saúde das mães do que a de seus bebês e, ao reclamar do barulho que as crianças fazem enquanto brincam, nos perguntamos se a acusação não tem mesmo algum fundamento.

Ao longo do filme, suspeitamos das ações e do caráter de todos – inclusive de uma freira ríspida, acusada de roubar morfina e de ter provocado o suicídio de um dos pacientes do hospital. A desconfiança não poupa ninguém, nem mesmo as crianças que mentem com extrema facilidade e fazem os adultos de bobos. Vorzet, o psiquiatra que ajuda na investigação que Germain iniciou a fim de limpar o próprio nome, diz que não é possível sermos totalmente maus ou bons, que há várias gradações de cinza entre a luz e a escuridão. Até então, o médico se recusava a acreditar nisso, mas mergulhado na podridão das denúncias, começa a duvidar de qualquer inocência ou bondade verdadeiras – até ser confrontado pela amante Denise (Leclerc) em uma bela cena.

Pelos suspenses que fez, Clouzot recebeu a alcunha de “Hitchcock francês”. Apesar do apelido ser questionável, é melhor não revelar muito sobre o desfecho de Le Corbeau, assim como devemos fazer quando falamos dos filmes de Hitchcock caso alguém ainda não tenha assistido. Basta dizer que, no fim, depois de tanta dúvida e cinismo, o diretor afirma a necessidade de julgar aos outros de forma moral (o que muitas vezes requer uma reação severa), mas fala também da importância do amor e da confiança nesse processo, que servem para garantir que não passemos a questionar tudo, inclusive o que é certo e verdadeiro. Só assim pode haver uma justiça que dê fim ao ódio e ao desespero generalizados – e é só assim que pode haver um futuro. Não é à toa que os nazistas não gostavam do filme.

Brighton Rock, 1947

4 maio

Adaptação do romance de mesmo nome do autor inglês Graham Greene, também roteirista do filme, Brighton Rock está em décimo quinto lugar na lista de cem melhores filmes britânicos da British Film Institute (The Third Man, de 1949, outro filme escrito por Greene, está em primeiro). Dirigido por John Boulting, mais famoso pelas comédias que fez com o irmão gêmeo do que pelo noir de 1947, tem Richard Attenborough (futuro diretor de Gandhi e Chaplin) como Pinkie Brown, um gangster de apenas dezessete anos que assume a liderança do bando após uma reportagem contribuir com o assassinato do líder por uma gangue rival. Pinkie encontra o jornalista responsável pela matéria e o mata em um parque de diversões dentro de um daqueles passeios de sustos, repleto de monstros e caveiras. Ele faz parecer suicídio, mas acaba levantando as suspeitas de Ida Arnold (Hermione Baddeley), uma mulher de meia-idade que encontrou o jornalista em um bar pouco antes de sua morte.

A única que pode provar o crime é uma garçonete ingênua chamada Rose (Carol Marsh), também de dezessete anos, mas que é o oposto do bandido. Ida quer que ela colabore com sua investigação amadora, mas Rose está apaixonada por Pinkie. Apesar de não retribuir o sentimento, ele não consegue simplesmente matá-la como faz sem remorso algum com os outros, e acaba se casando com ela para que, assim, não possa testemunhar contra ele em um possível julgamento. Durante uma cena em clube noturno, Rose mexe na bolsa e deixa cair um terço na mesa. Pinkie pega o terço e, enquanto mexe nele devagar, diz que também é católico, que “esses ateus não sabem de nada” e que há sim um inferno, cheio de chamas e tormentos. Em seus olhos, não há o temor por uma situação futura, que virá somente após a morte, mas uma angústia conformada de um inferno que ele já conhece.

Publicado em 1938, Brighton Rock foi o primeiro livro de Greene a abordar uma temática católica (assim seguiram The Power and the Glory, The Heart of the Matter e The End of the Affair). Apaixonado pela católica chamada Vivien Dayrell-Browning, sua futura esposa, o autor que antes era cético começou a estudar a religião e acabou se convertendo. Anos depois, passou a detestar a alcunha de “escritor católico” que Evelyn Waugh, por sua vez, aceitava de bom gosto. Preferia ser conhecido como um escritor que, “por acaso”, era católico. Brighton Rock começa como uma história de detetive qualquer e termina na discussão entre o bem e o mal e o que Greene chamou de “a estranheza espantosa da misericórdia de Deus”. Além disso, mostra a diferença entre o pensamento ético (como o de Rose) e o pensamento meramente religioso (como o de Pinkie, que tem fé, mas não a exerce de forma ética). Em uma das cenas do filme, quase que sem importância alguma, um homem passa carregando uma placa com os dizeres “the wages of sin is death”, isto é, “o pagamento do pecado é a morte”.

Visualmente, há filmes do gênero que são mais interessantes (como o próprio The Third Man), mas o som desempenha um papel bastante importante no sentido de perturbar tanto os personagens como o espectador em momentos tensos. O choro incessante de um bebê, uma risada escandalosa, a música alta que o vizinho não para de escutar, tudo transtorna aqueles que já têm problemas suficientes para resolver. Contudo, é a complexidade das motivações dos personagens, bem como a temática moral imersa em uma trama noir que tornam Brighton Rock um filme raro.