Samurai I: Musashi Miyamoto, 1954

15 maio

Há no Japão, assim como no Brasil, uma fusão de crenças diversas – com a diferença, é claro, do Japão ser muito mais antigo. Antes dos primeiros portugueses católicos chegarem em 1549, já havia o xintoísmo, o budismo e o confucionismo. Até hoje, os japoneses praticam rituais de religiões diferentes no dia a dia. Existe uma certa convergência entre as práticas, mas também conflitos. Para compreender um pouco da estética e do espírito japonês, é preciso ter a capacidade de aceitar tais paradoxos que lhes são familiares há tanto tempo. Wabi-sabi, por exemplo, é um conceito de origem budista que fala da beleza do que é imperfeito, transitório ou incompleto, valorizando assimetrias e irregularidades (isto é, o contrário da Proporção Áurea ocidental, em que o perfeito tem de ser matematicamente perfeito). Na base de toda história de samurai, talvez o maior ícone que temos do Japão, há outro conflito: a obrigação social, o dever (giri) versus o sentimento, a vontade própria (ninjo). Muitas vezes, a consciência (que é um guia moral de origem divina) discorda daquilo que é esperado do samurai, gerando um paradoxo.

Como os caubóis americanos, os samurais tinham de viver de acordo com um certo código de conduta ou então não eram dignos de suas próprias vidas. Não bastava ser forte ou corajoso, era preciso saber como se portar com discernimento e humildade diante dos conflitos. Samurai I: Musashi Miyamoto, o primeiro de uma trilogia, trata da transformação de Takezo, um homem jovem de muita disposição e de pouco juízo, no samurai Musashi. Interpretado pelo ator Toshiro Mifune (mais conhecido pelos filmes de Akira Kurosawa como Seven SamuraiRashomon), Musashi é uma figura histórica que teve as suas aventuras romanceadas em 1935 por Eiji Yoshikawa. O romance de quase mil páginas (na versão americana) foi adaptado para o cinema pelo diretor Hiroshi Inagaki. O primeiro filme ganhou um prêmio especial do Oscar em 1955.

Depois de perderem a batalha de Sekigahara, Takezo e Matahachi se escondem na cabana de uma viúva e sua filha que, como as personagens em Onibaba de 1964, vivem do que roubam dos derrotados. Sem nenhuma presença masculina a não ser a dos mortos, as duas se encantam com a impetuosidade de Takezo. “Você me faz sentir como uma mulher,” diz a viúva. Matahachi, em comparação, se revela covarde e imoral ao desrespeitar o compromisso que tinha com sua noiva Otsu e casar com a viúva rejeitada. De volta à vila para contar à mãe de Matahachi e Otsu que ele está vivo, Takezo é perseguido como se tivesse abandonado seu companheiro no campo de batalha. Capturado por um monge budista e pendurado em uma árvore por dias, Otsu se apaixona por ele. É através do sacrifício de Otsu (e também da tutelagem do monge) que Takezo começa a se tornar Musashi, mas ele tem escolher entre o amor e o caminho que precisa seguir sozinho como samurai.

Filmes de samurais, assim como os faroestes, são bons em fornecer exemplos fortes e íntegros de masculinidade. Muitas vezes, tais exemplos são oferecidos já prontos (como John Wayne na maioria dos filmes de John Ford, por exemplo). Samurai I vale principalmente por mostrar o processo necessário para que um homem se torne um homem – o que envolve alguma humilhação, bastante estudo e o amor de uma mulher. Talvez seja preciso colocar essas coisas de lado para seguir adiante, mas não haveria futuro sem elas. Além disso, há a noção de que o único caminho para a felicidade, mesmo com todos os conflitos e paradoxos, é sendo moral. Matahachi foi incapaz de escutar a própria consciência, cometeu o erro de se casar com a viúva mesmo estando compromissado e passou a viver infeliz, mal-tratado pela mulher que não consegue respeitá-lo. Tudo isso o filme ensina sem ser didático ou simplista, com uma fotografia belíssima e atuações excelentes.