Samurai III: Duel at Ganryu Island, 1956

3 jun

No último filme da trilogia, Musashi já é um samurai respeitado por todo o Japão, invicto há sessenta duelos. Mesmo assim, vive de forma humilde e sem entrar em brigas desnecessárias – ainda que seu discípulo fique provocando todo mundo e ele tenha de defendê-lo toda hora. Kojiro, por sua vez, é um ronin tão habilidoso quanto, mas vaidoso e arrogante. Sua maior ambição é ser reconhecido como o homem que derrotou Musashi e, para chamar sua atenção, mata quatro samurais. Os dois marcam um duelo, que acaba adiado em um ano. Nesse tempo, Kojiro conquista fama e riqueza servindo ao Shogun; Musashi se torna fazendeiro em um campo distante (onde reencontra Otsu e Akemi). Eles só se enfrentam nos cinco minutos finais.

Musashi é mais feliz cuidando da plantação do que Kojiro depois de se tornar um dos homens mais poderosos e temidos do shogunato (talvez porque a ambição final de Kojiro não seja matá-lo, mas se tornar como ele, o que é impossível). Quando jovem, Musashi odiava as tarefas do campo e tinha a mesma ambição de Kojiro, mas depois de tantos anos vagando, percebeu que era melhor se estabelecer em algum lugar e permitir também a afeição dos outros – fazer parte, enfim, de algo maior do que ele mesmo. Buscando viver sem remorsos, ele enfrenta o maior inimigo que jamais poderia enfrentar. O resultado é triste de qualquer jeito. Se perder, não será poupado. Se ganhar, seus dias como samurai se encerram.

Samurai I e II são tão bons que talvez o terceiro seja prejudicado pela expectativa da conclusão. Apesar do final espetacular (mesmo com o golpe final sutil), parece que Samurai III: Duel at Ganryu Island não é tão vibrante quanto o primeiro ou tão sólido quanto o segundo. Não há nada de errado com o jeito que a história termina, muito pelo contrário, mas certos elementos no decorrer da trama são mal explorados e alguns personagens agem de forma tão confusa que acabam como um mistério. Fazendo um esforço, é possível interpretar o último gesto de Akemi, por exemplo, como uma redenção, mas a mudança em sua atitude é brusca e muito pouco fundamentada. Já não há também muita coerência na postura de Otsu, característica que era um dos pontos altos de Samurai II – mas a resolução do seu caso com Musashi é niponicamente satisfatória (isto é, sem grandes arroubos de paixão, mas suficiente ao bom entendedor).

Um ponto fraco do segundo filme com relação ao primeiro e ao terceiro, porém, é ter sido gravado, em grande parte, em estúdio. Para o desfecho da trilogia, o diretor Hiroshi Inagaki volta às locações. A cena final do duelo na praia é de uma beleza tão embasbacante que o pôr-do-sol até parece pintado em tela, mas a água do mar batendo nos pés do ator Toshiro Mifune (perfeito em todos os detalhes) nos faz lembrar de que tudo é verdadeiro – sem falar na beleza da cena de uma queda d’água formando um arco-íris sobre Kojiro e de uma outra cena com o Monte Fuji ao fundo. Samurai III pode não ser o melhor filme dos três, mas tem algumas das imagens mais bonitas e memoráveis.

Uma curiosidade boba: há uma cena em que Musashi impressiona todos os hóspedes da estalagem ao pegar moscas usando os hashis do macarrão. Muito provável que serviu de inspiração ao Karate Kid.

Behind the Candelabra, 2013

28 maio

Antes de qualquer coisa, se diz homossexualismo e não homossexualidade – assim como jornalismo (e não jornalidade), capitalismo (e não capitalidade), budismo (e não budicidade) e atletismo (e não atleticidade). “Ismo” não é sufixo só de doença (como reumatismo), mas também de ideologia política, teoria filosófica, movimento artístico ou qualquer fenômeno sociológico. Ou seja, não há nada de ofensivo. É só a língua portuguesa. Resolvido isso, vamos falar de homossexualismo em si. Ou melhor, vamos falar do filme antes. Behind the Candelabra é, em tese, o último da carreira do diretor Steven Soderbergh e fala do relacionamento problemático entre Scott Thorson (Matt Damon) e Liberace (Michael Douglas), quarenta anos mais velho.

No início do filme, Scott vai para Las Vegas com um amigo assistir o show do pianista, fica admirado com o seu talento e acha graça quando ouve que ninguém sabe que ele é gay (mesmo estando coberto de brilho da cabeça aos pés). Por décadas, Liberace tentou manter a aparência de que era heterossexual, processando qualquer um que dissesse o contrário, mas sem deixar de acolher algum “protegé” jovem e bem-afeiçoado em sua mansão. Depois do show, Scott acaba lhe conhecendo em seu camarim e percebe seu interesse. Os dois ficariam juntos por seis anos, até Scott ser “demitido” e processar Liberace por uma pensão alimentícia (não se preocupem, esse não é o final).

Liberace, ou “Lee”, que vive com cachorrinhos de várias raças, diz que ama os animais porque eles gostam dos donos não importa o que aconteça – mas que talvez seja por isso mesmo que são apenas animais estúpidos. Quando Scott avisa que vai morar com Lee, sua mãe adotiva pergunta se ele sequer gosta dele (detalhe: ninguém sofre preconceito por ser gay, só os gays têm preconceito). Talvez não seja amor ainda, talvez seja uma combinação de vários outros fatores, inclusive o desejo de ter mais conforto, de viver uma aventura e, principalmente, de sanar uma carência muito mais profunda. Scott foi abandonado por sua família biológica e Lee, com o seu narcisismo, quer suprir as funções de amante, pai, irmão e melhor amigo.

Por um período, a relação vai bem. Lee gosta de cozinhar, Scott gosta de comer e os dois engordam felizes. Um dia, Lee se vê na televisão, decide que precisa de cirurgia plástica para rejuvenescer e chama o Dr. Jack Startz (Rob Lowe, melhor participação de todo o filme). Depois de uma recauchutagem geral que faz com que Liberace não consiga fechar os olhos para dormir, é a vez de Scott. Lee quer que ele opere o rosto para ficar parecido com ele mesmo, o que Scott acaba acatando desde que o médico faça um discreto furo no queixo, seu único pedido. Mais tarde, a mãe de Liberace (Debbie Reynolds) conta que ele tinha um irmão gêmeo que morreu. Não é possível afirmar com certeza se a sua necessidade de ver tanto de si mesmo ao seu redor é fruto de megalomania, de uma espécie de compensação pela morte do irmão ou coisa parecida, mas podemos dizer que seu relacionamento com Scott não é dos mais sadios. E quando Liberace decide adotá-lo só fica mais estranho.

Não há nada de errado entre duas pessoas que se amam – sejam homens, mulheres, brancos, negros, carteiros, tias, o que for – desde que realmente amem uma à outra e não se utilizem apenas como cura de mágoas não resolvidas ou para dar vazão a delírios egocêntricos. O homossexualismo é doença quando o outro é como um espelho; quando não se ama um indivíduo, mas uma projeção de si mesmo ou do que se gostaria de ser. Os amantes de Liberace são quase todos substituíveis. Há sempre alguém mais jovem, mais em forma, mais interessante. Seu “amor” não quer dizer nada – mas isso também não é um problema exclusivo dos homossexuais.

Por fim, Soderbergh consegue um resultado que é, ao mesmo tempo, engraçado, estranho e comovente. Em um momento, adoramos os personagens. Em outro, sentimos repulsa de como eles podem ser teimosos ou burros. E, em outro, ficamos com pena, emocionados. Junto de Magic Mike, são dois filmes do diretor de finais que surpreendem de tão morais – pois Liberace paga sim pelo seu estilo de vida, enquanto o fiel Scott é poupado. Infelizmente, Behind the Candelabra não pode concorrer ao Oscar (Michael Douglas seria um candidato fortíssimo) porque foi produzido pela emissora HBO e não vai passar nos cinemas dos Estados Unidos. Também não deve passar por aqui, mas já está pela internet.

A Perfect World, 1993

26 maio

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Assim como a grande literatura diz o indizível, o grande cinema revela o irrevelável – ambos têm a capacidade de expor algo de verdadeiro escondido sob a aparência das palavras ou das imagens. Na vida real, nem sempre paramos para contemplar a essência de cada questão ou para imaginar as pessoas ao nosso redor como se fossem personagens de seus próprios dramas, de onde vieram e para onde estão indo. Acreditamos no que for mais fácil, rápido e superficial. É a ficção que torna possível compreender melhor a realidade – que, em geral, é muito mais complexa do que imaginamos. Alguns poucos autores, sejam escritores ou diretores, conquistam uma falsa simplicidade: tratam dos personagens mais complexos com tanta clareza e precisão que até parece fácil reproduzir o resultado. A Perfect World, de Clint Eastwood, é um desses filmes “fáceis”, mas que só aparecem muito de vez em quando.

Passado no estado do Texas em 1963 (às vésperas do assassinato de Kennedy), Kevin Costner é Butch Haynes, um criminoso com algum senso moral que foge da prisão junto com Terry Pugh, lixo humano completo. Enquanto procuram por um carro de fuga, Terry invade a casa de uma família de testemunhas de Jeová onde estão três crianças e a mãe. Percebendo a falta de um homem que possa defender a mãe (a ausência do pai é importante), ele tenta estuprá-la, mas é interrompido de forma violenta por Butch e um vizinho armado não muito esperto. Com a confusão, os dois fogem levando Phillip, de oito anos, como refém. E assim começa a perseguição aos dois bandidos.

Comentando sobre o período em que o filme se passa, Eastwood disse que a nação estava “à beira de uma grande reviravolta em direção ao vazio”. Nos Estados Unidos, o assassinato de Kennedy é considerado como um divisor de águas, o fim da inocência. Em A Perfect World, a ruptura com os padrões antigos de pensar e agir não começa ainda em nível nacional, mas já se manifesta de forma individual. Tanto Phillip como Red Garnett (o próprio Eastwood no papel do Texas Ranger atrás dos foragidos) sairão completamente mudados.

Red conhece Butch e se sente responsável por ele. Anos atrás, tomou uma decisão que influenciou o rumo de sua vida, mas já não tem tanta certeza de ter feito a melhor escolha. Para a maioria dos policiais (e um agente seboso do FBI), tudo indica que Butch é um criminoso tão perigoso quanto Terry, se não pior. Eliminá-lo assim que possível é, para eles, a melhor forma de resolver logo a situação. Apenas Red e a criminologista Sally Gerber (Laura Dern) que, apesar de algumas evidências contrárias, insistem em confiar no caráter de Butch.

Sally estudou o passado conturbado de Butch e faz o exercício constante de se colocar em seu lugar para compreender suas motivações mais pessoais, prever quais serão os seus próximos passos e se ele representa algum perigo real ao menino. Em reunião com os colegas, ela narra sua infância em primeira pessoa, como se encarnasse o seu modo de falar, as suas memórias e os seus desejos. Fazendo isso, Sally obtém uma compreensão melhor da pessoa que ele é e de como, após tanto sofrimento, se tornou um criminoso.

O comportamento de Terry, contudo, não se justifica com um passado de miséria, mas com burrice e mau-caratismo puros. Não há nele um único impulso bondoso ou sensato. Desde gastar as últimas balas do revólver à toa até a tentativa de molestar o garoto sexualmente, tudo o que ele faz é estúpido ou odioso. Ainda que não apareça por muito tempo, tal personagem é importante ao filme porque, do contrário, daria a entender que todo criminoso é apenas um coitado incompreendido, uma vítima da sociedade. Não. Há aqueles que sentem prazer em serem maus ou que são muito burros para serem bons (e nem todos que são desse jeito se tornam bandidos, alguns encontram outras formas de praticar a maldade e a ignorância).

Enquanto a busca se encaminha, Butch e Phillip (ou “Buzz”, seu novo apelido) vão formando uma relação não tanto de sequestrador e refém, mas de pai e filho. Butch conhece a falta que um pai faz na vida de um garoto de oito anos e tenta ao máximo tratá-lo da forma como queria de ter sido tratado na mesma idade. Responde qualquer pergunta sinceramente e permite que ele tome as suas próprias decisões (inclusive se pretende seguir na viagem ou voltar para a mãe). Como Sally, Butch tem a capacidade de se colocar no lugar dos outros. Depois de roubar o carro de uma família, sente pena do dono, diz que não há nada mais corajoso do que trabalhar e criar os filhos enquanto outros fogem das obrigações. Preocupado com a formação do menino, ressalta que roubar é errado (mas não tão errado quando você realmente precisa de algo) e proporciona experiências que, como testemunha de Jeová, Phillip nunca teve permissão de fazer antes, como celebrar o Halloween ou comer doces.

Butch é simpático, mas não admite quem maltrata os filhos – e essa “intolerância” em particular vai lhe custar problemas graves. Tentando corrigir o comportamento de um fazendeiro que bate no filho pequeno, ele aponta a arma para a cabeça dele, manda que abrace o menino e diga a ele que o ama. Assustado, o fazendeiro diz que o filho sabe que o pai dele o ama, mas Butch insiste que ele fale mesmo assim. Algumas gerações anteriores (a do meu pai, por exemplo) foram criadas dessa forma, com rigidez e um amor verdadeiro, ainda que distorcido ou nunca declarado. Não que seja correto um homem adulto surrar uma criança de seis anos por não responder de imediato, mas era uma realidade que, muito provavelmente, foi transmitida pela geração passada como algo comum e até necessário. Aqui, o exercício de empatia seria “se eu apanhei quando criança e sobrevivi, por que não posso bater nos meus filhos?” Mas, é claro, não é tão simples assim – tentar entender os outros nunca é.

No fim do filme, depois da resolução do caso, Red diz que não sabe de coisa nenhuma (“I don’t know nothin’. Not one damn thing”), mas a dúvida não deve ser encarada como algo totalmente negativo – ela só permite um exercício maior de fé nas pessoas.

Woman of the Year, 1942

23 maio

Katharine Hepburn e Spencer Tracy se conheceram nas filmagens de Woman of the Year (1942) e permaneceram juntos até a morte de Tracy em 1967. Nunca se casaram, pois Tracy nunca se divorciou legalmente de sua primeira esposa, mas o carinho e a admiração que sentiam um pelo outro já eram visíveis no primeiro dos nove filmes que fizeram (que incluem Adam’s Rib e Guess Who’s Coming to Diner, o último deles). Ainda hoje, Katharine Hepburn é considerada por muitos como um ícone do feminismo. De fato, ela não se encaixava ao padrão de uma starlet comum. Além de interpretar personagens fortes e independentes, e de ter sido uma das primeiras mulheres famosas a ter o hábito de usar calças (depois de Marlene Dietrich), Hepburn controlou muitos aspectos da produção de alguns de seus maiores filmes, decidindo inclusive quem seriam os seus diretores e os seus coadjuvantes (Tracy foi uma escolha dela, junto do diretor George Stevens). A verdadeira essência das pessoas, contudo, é sempre mais complexa do que a capacidade que um rótulo tem de descrever alguém. Assim que o seu parceiro por mais de duas décadas adoeceu, Hepburn paralisou a carreira por cinco anos para cuidar exclusivamente dele, período que chamou depois de “o mais feliz de toda a minha vida”. Por coincidência ou não, Woman of the Year trata justamente sobre o relacionamento complicado entre duas pessoas inteligentes e ativas. Seja o homem ou a mulher, não é possível subjugar um às necessidades do outro. É preciso amor e dedicação de ambas as partes.

Spencer Tracy interpreta Sam, um jornalista esportivo que trabalha no mesmo jornal de Tess (Hepburn), responsável pela seção de política internacional. Um dia, Sam escuta Tess falando no rádio, dizendo que as pessoas deveriam gastar energia com assuntos mais importantes do que esportes. Os dois começam uma discussão pública em suas respectivas colunas, mas se sentem atraídos ao serem apresentados cara a cara. Querendo encerrar a briga de vez e conhecê-la melhor, Sam leva Tess para assistir um jogo de beisebol. Apesar de não entender nada, ela acaba se sentindo à vontade na cabine de imprensa dominada por homens. Tess retribui o convite e chama Sam para ir ao seu apartamento à noite. Imaginando que a levaria para jantar ou algo assim, leva flores, mas se depara com uma festa repleta de diplomatas, onde quase ninguém fala inglês. Ocupada ao extremo, Tess é uma figura muito mais poderosa do que Sam, lida todos os dias com vários chefes de estado, é fluente em espanhol, francês, alemão, grego e russo. Sam só fala inglês errado (“broken english”), o que assume rindo de si mesmo. Qualquer medroso se sentiria intimidado e desistiria por completo de Tess, mas Sam tem estrutura suficiente para aceitar o desafio. Se fosse hoje em dia, Tess teria uma dificuldade muito maior em encontrar alguém à altura.

Talvez por reflexo da Segunda Guerra Mundial, tanto homens como mulheres aparentavam ser mais fortes e mais corajosos nos filmes da década de 40. Com os homens nos campos de batalha, as mulheres passaram a se instruir mais e ocupar cargos que antes eram masculinos, o que as deixaram mais confiantes e livres. Trabalhar não era mais uma prática limitada às mulheres pobres ou um passatempo terapêutico de socialites, se tornou aberto a qualquer mulher interessada em desenvolver e expressar suas habilidades, sejam quais fossem. Nos anos 50, um retrocesso: Designing Woman, de 1957, é um filme parecido com Woman of the Year, mas quem faz par com o jornalista esportivo interpretado por Gregory Peck é a personagem ultra-feminina de Lauren Bacall, uma estilista de moda que, ao contrário da desenvoltura que Tess demonstra no jogo de beisebol, mal consegue assistir uma luta de boxe sem desmaiar. Imagine o que a Bacall de To Have And Have Not não pensaria dessa frescura toda – ou Bacall em The Big Sleep, em Dark Passage, etc.. Nos anos 40, a coragem era um privilégio tanto feminino quanto masculino. É apenas em nível de igualdade – reforçando, sem nenhum ser superior ou inferior ao outro – que pode haver respeito, admiração e um amor duradouro.

Há, é claro, o risco de uma confiança excessiva decorrente da independência, mas pode acontecer de ambos os lados: o homem que se acha grande coisa acaba abusando da mulher, a mulher que fica confiante demais acaba emasculando o homem. Aqui, a igualdade não se refere a uma necessidade de que os papéis se desfaçam por completo (homens agindo como mulheres, mulheres agindo como homens ou todo mundo agindo de uma forma unissex), mas uma igualdade no que se refere ao respeito e ao amor. Em His Girl Friday, de 1940, o personagem de Cary Grant explora o talento da jornalista (e ex-mulher) para sabotar o seu segundo casamento e a aposentadoria subsequente. Além de respeitar a sua capacidade profissional como faria com “um dos rapazes” (na peça que inspirou o filme, adaptada de forma mais fiel por Billy Wilder em The Front Page, o papel original de Rosalind Russell era de um homem), ele sabe que ela só pode ser feliz fazendo o que ama – e, de preferência, ao lado dele. No ideal feminino de Howard Hawks, a profissão ou a iniciativa de uma mulher não significam que ela tenha de ser desprovida de atributos femininos ou charme. Suas personagens são sensíveis e vulneráveis, mas também fortes e enérgicas. Afinal, como o gesto de Hepburn em abandonar a carreira para cuidar de Tracy, a vida real é muito mais complexa do que acatar definições de feminista ou anti-feminista.

É tal complexidade, tal equilíbrio entre caraterísticas diversas (como ser forte e vulnerável ao mesmo tempo) que Tess não consegue compreender. Em Woman of the Year, ela é agressiva em excesso até na forma de seduzir – situação que Sam só pode contornar se resistir aos seus avanços. A “mulher do ano” (prêmio que recebe mais adiante no filme) o leva ao seu apartamento depois de um encontro, demonstra que espera que ele passe a noite e que os dois façam sexo (o diretor não deixa explícito, mas entendemos a indireta dada pela fotografia de duas silhuetas que se unem). Enquanto ela vai até o quarto, Sam decide ir embora de fininho, se esquecendo até do chapéu. Depois, ele explica que, dadas as circunstâncias da última noite, só haveria uma mulher no mundo que ele poderia ter recusado da forma como recusou: aquela com quem ele pretende se casar. Com uma postura mais antiga e tradicional do que a de Tess, sua evasão era um sinal de respeito e honra. Os dois decidem se casar, ainda que de forma apressada e um tanto sem graça. A partir daí, a carreira movimentada de Tess sempre atrapalha a relação (e até a intimidade) dos dois. Sam é tratado como secretário, como empregado, como acessório… Tudo por causa da prepotência de sua esposa em achar que o que ela faz é muito mais importante – e que, portanto, ela é muito mais importante. O casamento dos dois deixa de ser uma união de alegrias e tristezas compartilhadas e se transforma em um relacionamento (ruim) entre patroa e funcionário. Sam vai ficando cada vez mais desiludido, até que decide se mudar. Em sua ausência, Tess começa a perceber que todo o seu sucesso profissional não vale nada se não puder compartilhar com alguém.

Billy Liar, 1963

22 maio

Seria natural que Albert Finney fosse o protagonista da versão cinematográfica de Billy Liar, já que tinha interpretado o papel na adaptação teatral do livro de Keith Waterhouse. Mas foi Tom Courtnay, o substituto de Finney na peça, quem acabou protagonizando o filme sobre o mentiroso compulsivo. Courtnay era fisicamente parecido com Finney, só que mais franzino – e ambos lembram Ewan McGregor aqui e ali. Pela aparência dos atores e também pela trama, é difícil não pensar em Big Fish (2003), em que McGregor faz a versão mais nova do personagem embusteiro de Finney. Exagerando, Billy Liar (1963) pode ser encarado como uma prequel inglesa do filme de Tim Burton ou, no mínimo, uma inspiração grande.

Billy Fischer tem uns dezenove anos, mora com os pais em uma cidadezinha perto de Londres e trabalha em uma funerária. Entediado com a rotina, inventa todo um país chamado Ambrosia do qual é o ditador (mas onde também pode ser o soldado que retorna triunfante da guerra, o membro da fanfarra, ou quem mais ele quiser). A adaptação cinematográfica funciona tão bem porque, em vez do personagem simplesmente descrever as suas ilusões de grandeza, ele é mergulhado direto em suas fantasias, sem nada que tente explicar ao espectador o que é sonho ou não. Misturando a realidade de Billy com a sua imaginação sempre ativa, o diretor John Schlesinger (dos excelentes Midnight CowboyMarathon Man) nos envolve em desfiles gloriosos, fantasias eróticas e despedidas dignas de heróis nacionais.

Em muitos aspectos, Billy é um anti-herói. Rouba dinheiro do emprego, mantém três namoradas (fica noivo de duas) e perde a calma a todo instante, alvejando com uma metralhadora de mentirinha qualquer um que lhe incomode. Seus pais, que não tiveram a mesma educação, insistem que ele deveria ser grato pelas chances que teve, que deveria dar um jeito na vida e se conformar com o padrão. Por outro lado, nos simpatizamos com as suas fantasias, com o seu desejo de fuga. Tudo ao seu redor é morte e decadência. Bairros inteiros de casinhas suburbanas estão sendo demolidos para dar lugar a prédios monstruosos; na funerária, seu chefe fala que a próxima tendência é o caixão de plástico, que as pessoas não gostam mais de nada decorativo, tudo tem de ser clean; Barbara, uma de suas noivas, adora passear pelo cemitério, repetindo os dizeres das lápides de forma irritante e insensível. A vida real parece mesmo muito deprimente.

A única que compreende Billy – e que sabe quando ele está mentindo – é Liz, interpretação de Julie Christie que a lançou à fama. Bonita, inteligente e excêntrica, seu maior desejo é se tornar invisível, poder vagar pelos lugares sem ter de se explicar e sem fazer parte de nada. Billy lhe conta sobre o seu país imaginário, que é o seu jeito de se tornar invisível. Juntos, eles pensam em fazer a vida em Londres, onde podem escapar para um lugar criado só para eles e os filhos que planejam ter. Liz combina de encontrá-lo na estação de trem à meia-noite, mas uma série de acontecimentos acaba influenciando a sua decisão de partir ou não. O final do filme pode ser interpretado de formas diferentes: Billy opta pela realidade, por uma fantasia diferente, ou decide utilizar sua imaginação para incentivá-lo, enfim, a fazer a coisa certa (eu acredito nesta interpretação).

Samurai II: Duel at Ichijoji Temple, 1955

21 maio

No primeiro filme da trilogia Samurai, Takezo canaliza toda a sua impetuosidade em algo últil e se torna Musashi Miyamoto, um samurai concentrado e de força extraordinária. Samurai II: Duel at Ichijoji Temple dá prosseguimento à sua educação, mas com algumas tentações pelo caminho. Buscando aperfeiçoar suas habilidades, Musashi desafia todos os espadachins de renome que encontra. Após um duelo bem sucedido, um velhinho que presenciou a batalha comenta sobre o seu uso excessivo de força, dizendo que um samurai é muito mais complexo do que isso. Abismado, Musashi percebe que ainda tem muito a aprender – inclusive a como ser mais vulnerável, paciente e caridoso.

Se o primeiro filme mostra a transformação de Takezo em um homem de verdade, o segundo lida com o ajuste de sua personalidade irascível em um cavalheiro – que é a verdadeira constituição de um samurai. De volta à Kyoto, ele reencontra os personagens do seu passado, inclusive Otsu que há anos esperava pacientemente pelo seu retorno. Como um James Bond nipônico, todas as mulheres que conhece ficam perdidamente apaixonadas por ele, mas Otsu é a única que tem a capacidade de fazê-lo desistir de sua jornada solitária.

Se Musashi representa o homem ideal, somente Otsu, com sua perseverança e a pureza de seu amor, pode ser seu par. Utilizando exemplos opostos de conduta, o diretor Hiroshi Inagaki reforça qual é o modelo a seguir. A covardia e a indulgência de Matahachi são opostas à coragem e ao senso de dever de Musashi; a atração doentia que Akemi sente é contrária à dedicação generosa de Otsu. De novo, há a ideia de que a felicidade só é possível se obedecermos um guia moral. O caminho correto a percorrer não é totalmente livre de percalços, mas aqueles que não consideram um padrão ético (a ser obedecido na prática) só provocam sofrimentos desnecessários e estéreis a eles mesmos.

Para se tornar um samurai completo, Musashi precisa aprender a ser “mais fraco”. Aceitar (e consumar), enfim, o seu amor por Otsu pode torná-lo mais vulnerável – e, paradoxalmente, um guerreiro melhor e mais forte. O perigo está na possibilidade de se apegar a esse sentimento de uma forma desmedida e que só provoque desonrosa e vergonha aos dois. Em uma das cenas finais do filme, como em um haiku, Inagaki utiliza as imagens da natureza para ilustrar o que Musashi sente por Otsu: uma torrente crescente no rio próximo ao casal, que só se acalma quando Musashi percebe, consternado, que seu aprendizado ainda não acabou.